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"Coreia do Norte não é suicida", diz ex-embaixador do Brasil

9 de maio de 2017

Diplomata Roberto Colin, que viveu em Pyongyang, diz que regime age de forma racional e calculada e avalia que sanções econômicas prejudicam mais a população do que a elite.

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Nordkorea Kim Jong-un
Foto: Reuters/KCNA

O embaixador Roberto Colin foi responsável por comandar a missão diplomática do Brasil na Coreia do Norte entre 2012 e 2016. Em meio à preocupação gerada  pela nova crise envolvendo as ambições nucleares do país comunista, ele afirma que Pyongyang está seguindo uma estratégia racional. "Não é uma liderança suicida", afirmou em entrevista à DW. Segundo o diplomata, que hoje ocupa o posto de embaixador na Estônia, a postura belicosa do regime é uma maneira de forçar negociações.

Ainda de acordo com Colin, este não é só um momento de preocupação, mas também de oportunidade, já que transcorre paralelamente a mudanças de governo nos EUA e na Coreia do Sul que podem levar a uma nova reaproximação com os norte-coreanos e ao surgimento de uma nova "Política do Brilho do Sol", semelhante à exercida entre 1998 e 2008. "Trump fez ameaças, mas também é um pragmático", disse. "E o novo presidente da Coreia do Sul participou ativamente da 'Política do Brilho do Sol' nos anos 2000."

Natural de Blumenau e com 64 anos, Colin ingressou na carreira diplomática há mais de 30 anos. Nos final dos anos 1980, serviu em Bonn, na então Alemanha Ocidental, onde teve a oportunidade de ver as consequências da queda do Muro de Berlim. No início dos anos 1990, acompanhou a desintegração da União Soviética a partir da representação brasileira em Moscou.

DW Brasil: Qual é a estratégia por trás da agressividade do governo norte-coreano?

Roberto Colin: Ela tem uma razão de existir. É a questão não resolvida da Guerra da Coreia, que terminou há mais de 60 anos, apenas com um armistício entre Coreia do Norte, China e EUA, mas sem a assinatura de um acordo de paz. O que Pyongyang pretende com esses testes e com essa retórica agressiva é ser reconhecida, sobretudo pelos EUA, como uma potência nuclear.

Essa situação de tensão não é apenas resultado das ações da Coreia do Norte, mas de uma ação recíproca de interesses estratégicos e de segurança dos principais atores da região – os EUA, a China e as duas Coreias. O que a Coreia do Norte pretende fazer é convencer os EUA a se sentarem a uma mesa de negociação. Em última análise, o que eles querem é um tratado de paz, o que significaria também o fim das sanções. Eles querem mudar o status quo.

A península está há 64 anos numa situação que não é nem de paz nem de guerra. Alguns analistas afirmam que a manutenção desse status foi por muito tempo de interesse dos EUA. Outros atores, como a China, acham que a presença de 30 mil soldados americanos na Coreia do Sul tem o objetivo de conter os próprios chineses, e não os norte-coreanos.

Seguindo esse raciocínio, os EUA usam o problema norte-coreano para poder continuar a justificar a presença dessas tropas. Mas a manutenção da situação também interessa aos chineses, já que a Coreia do Norte funciona como uma espécie de Estado-tampão, que evita uma Coreia unificada ligada ao Ocidente em suas fronteiras. Mas se isso tudo interessa aos EUA e à China, não é de interesse da Coreia do Norte.

É claro que o isolamento do país é causado em parte por eles próprios, como uma forma de barrar a presença de informações e ideias que podem demolir toda a sua narrativa. Por outro lado, um isolamento total também é prejudicial para o país. A liderança procura com esses testes, com essa retórica belicosa, forçar os EUA a sentar à mesa e, com isso, mudar a posição americana.

Então não se trata apenas de paranoia do regime em relação ao Ocidente?

A Coreia do Norte não tem uma liderança suicida. Eles são muitos racionais. O programa, a retórica, tudo é muito bem calculado. Internamente, tem o objetivo de mostrar para a população que a Coreia do Norte é um país poderoso, temido, importante.

É claro que também tem um objetivo mais imediato. Todos os anos os EUA e a Coreia realizam exercícios militares conjuntos. Isso, é claro, sempre deixa a Coreia do Norte muito preocupada, temendo que possa ser um ensaio para uma invasão. Os norte-coreanos acham que a forma de resposta a isso são os testes, que são uma demonstração de força. Mas essa situação de tensão é alimentada por múltiplas partes. É uma ação recíproca.

Como o senhor avalia a abordagem de Donald Trump com relação à Coreia do Norte?

Abre novas possibilidades. Ele deixou claro durante a campanha que pretende resolver esse problema, que persiste há 64 anos. Nessas seis décadas houve muitas oportunidades perdidas. Quase se chegou perto de uma solução no final do governo Clinton. A então secretária de Estado americana, Madeleine Albright, foi a Pyongyang. Eles chegaram até mesmo a ensaiar uma visita do próprio Clinton. Seria algo semelhante ao que o presidente Nixon fez em relação à China nos anos 70. Isso poderia ter mudado as coisas, mas o plano surgiu já no apagar das luzes do governo Clinton. Acabou não se materializando.

Trump, por sua vez, parece disposto a fazer algo. Ele já passou de um extremo para o outro, chegou a fazer ameaças, insinuou que poderia usar uma opção militar, mas, por outro lado, mais recentemente, disse que também seria uma grande honra se reunir com Kim Jogn-un, desde que as condições estivessem criadas para esse encontro. Trump é muito pragmático.

Ao mesmo tempo houve eleições na Coreia do Sul. O esquerdista Moon Jae-in, que participou ativamente da "Política do Brilho do Sol" nos anos 2000, foi o vencedor. Na época dessa política, as duas Coreias pareciam estar tentando se entender. Só que isso coincidiu com o governo Bush, que não se preocupou muito com o problema norte-coreano, se concentrando no Iraque a Afeganistão. Depois, veio o contrário. O presidente Obama mostrou mais interesse, mas aí a Coreia do Sul passou a ser governada por presidentes que eram mais críticos em relação à Coreia do Norte e que acabaram com a política de reaproximação. Agora, estamos diante de uma possibilidade de que tanto os EUA, sob o Trump, e a Coreia do Sul, com Moon, acabem ficando alinhados, abrindo uma nova possibilidade de solução.

Como a população norte-coreana encara as regulares disputas do país com o Ocidente?

Hoje, com os meios disponíveis de informação, como DVDs e pen-drives, os norte-coreanos consomem muitas séries e filmes sul-coreanos. Então muitos têm alguma ideia de como é o mundo lá fora. Mas, de uma maneira geral, quando se trata de informação de fato, elas não sabem o que se passa no mundo exterior.

Não há internet e nada como as rádios ocidentais que podiam ser captadas na Europa Oriental nos anos 1980. Não se compara nem um pouco com a situação da antiga Alemanha Oriental, por exemplo. Lá era possível visitar as pessoas, ter amigos. Na Coreia do Norte, os rádios e televisores são incapazes de captar transmissões do exterior. A informação que elas recebem é totalmente controlada pela propaganda e posição oficial do regime. Nesse sentido, é um grande isolamento, um grande bloqueio. Mas acho que, com o tempo, esses meios de comunicação modernos vão acabar quebrando o monopólio da informação do regime. De um jeito de outro, as informações sempre vão achar um jeito de entrar.

Como as sanções afetam a Coreia do Norte? Elas produzem algum efeito sobre a condução do regime?

Há um lado negativo das sanções. Elas acabam atingindo quem não deveria sofrer com elas. O objetivo delas é forçar o regime a mudar suas atitudes, mas as elites – e isso acontece em todos os países – sempre estão protegidas e acabam não sentindo o impacto. Quem sofre é a população comum, no dia a dia. Elas atingem até mesmo o trabalho de organizações internacionais, como a ONU e ONGs independentes. Elas acabam tendo o trabalho dificultado, entrando numa vala comum, sendo mais complicado para elas transferirem recursos e ajuda. Até mesmo as embaixadas são afetadas. Os diplomatas têm que levar dinheiro vivo para se virar no país, já que a Coreia do Norte está totalmente desligada do sistema financeiro internacional. A população local, é claro, se ressente disso. Mas para o funcionamento do regime isso não é tão fundamental.

Qual é o futuro de um país como a Coreia do Norte? É possível esperar que um regime desses venha a se comportar de modo pacífico e previsível algum dia?

É possível. Até 1905, a Coreia viveu isolada do mundo, numa sociedade medieval, sendo chamada de Reino Eremita. Muita coisa que se vê hoje na Coreia do Norte não foi invenção desse regime. De algum modo foi a volta a uma situação que existia até 1905. A partir daquele ano, a Coreia passou a ser um protetorado do Japão. É complicado falar de democracia em um país que até 1905 foi feudal, depois passou por 40 anos de ocupação brutal por parte dos japoneses e depois adotou um regime de inspiração stalinista.

Esse país nunca teve um histórico de democracia e de liberdade. Claro que as coisas mudam. É só ver o caso da Alemanha e do Japão depois da guerra. A própria Coreia do Sul aprendeu a ser democrática.

Uma das perguntas é por que o país não adota reformas, como a China ou o Vietnã, onde o partido comunista continua no poder, mas liberaliza a economia. Isso não se repetiu por causa das sanções. No caso da China, o Ocidente investiu pesadamente a partir dos anos 70 e 80. Isso mudou o país. Não é essa a situação na Coreia do Norte. Quem vai querer investir lá sob sanções?

Tendo a concordar com os analistas que dizem que, ao tratar da questão norte-coreana, os países se fixaram na questão nuclear e deixaram de perceber certas tendências e movimentos, coisas que podem efetivamente mudar o regime, como a transformação da economia. Se houvesse a possibilidade de empresas ocidentais investirem na Coreia do Norte, isso ajudaria o país a mudar.

O senhor chegou a observar mudanças na Coreia do Norte enquanto serviu no país?

Pude ver um pouco da Coreia do Norte por dentro. Digo um pouco porque há grandes limitações, começando até pelo contato com a população local, que é possível, mas é muito superficial. Eu não podia, por exemplo, convidar norte-coreanos para a minha casa. Mas nos quatro anos em que fiquei lá, notei algumas mudanças superficiais, que num conjunto podem ter algum significado. 

Por exemplo, eu ia ao clube só em determinados dias, reservados para os estrangeiros. Os outros dias eram para os locais. De repente, essa regra foi abolida, e tanto estrangeiros como locais passaram a poder ir à piscina ao mesmo tempo. E passou a ser normal algumas pessoas conversarem com você. O povo é muito simpático e hospitaleiro. Nos quatro anos que passei lá, sempre no governo de Kim-Jong-un, vi várias coisas que sinalizavam mudanças em relação ao governo do seu pai. Repito: são coisas que podem parecer banais, mas que no conjunto têm significado. Esse regime atual não é imutável. Ele tem sofrido mudanças. São pequenas, mas existem.