Contra os répteis que se arrastam em suas tocas
1 de outubro de 2002Os principais jornais alemães trazem diariamente um caderno de cultura, chamado de "Feuilleton", que abre espaço à opinião de escritores, filósofos e pensadores. A palavra "Feuilleton", que vem de folhetim, sugere histórias de crimes e intrigas; mas esses suplementos desempenham um importante papel no debate político e cultural, como verdadeiros formadores de opinião pública.
Foi justamente no "Feuilleton" do Frankfurter Rundschau (edição de 27/09), numa linguagem ao mesmo tempo folhetinesca, profunda e virtuose, que Sloterdijk voltou à carga, depois de sua entrevista à revista austríaca Profil (veja nosso artigo). O polêmico filósofo alemão denunciou o que ele considera a "guerra civil semântica", desencadeada pelos atentados contra as torres do WTC.
Desde então, o chamado "mundo civilizado" que se autodenominou "Ocidente" tratou de elaborar um pensamento estratégico para defender uma suposta "paz interior", contra os ataques de um "exterior terrorista". O front dos democratas ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, estaria partindo para uma cruzada contra os muçulmanos, mas empunhando a bandeira que não é a dos cristãos, e sim a salpicada de estrelas cintiladas [a bandeira americana].
Os dois Ocidentes
Entretanto, as ordens de marcha enviadas pelo comando central de Washington (como "eixo do mal", por exemplo) não estão sendo bem compreendidas na Europa, constata Sloterdijk. Isto é um indício de que o "Ocidente" é mais diversificado do que se imagina, e que este exército supostamente monolítico desintegrou-se de agora em diante em pelo menos dois: o "Primeiro Ocidente", do império americano, e o "Segundo Ocidente", da Europa que busca uma forma correspondente ao seu peso econômico.
Sloterdijk voltou a defender o chanceler federal Gerhard Schröder que foi, segundo ele, o único estadista alemão a expressar claramente a não identidade dos interesses do Primeiro com o do Segundo Ocidente. A rejeição de Schröder a um ataque militar contra o Iraque foi "a mais notável declaração dos últimos tempos"; ressalta uma diferença que existe não apenas entre alemães e americanos, mas entre europeus e americanos, afirmou o filósofo.
A cultura da desconfiança exacerbada
Dito isso, Sloterdijk, trata de analisar as virulentas reações da mídia e dos políticos alemães à posição supostamente "anti-americana" de Schröder. Sua linguagem muda completamente: abandona as irônicas metáforas militares, que usou para caracterizar a comunicação unilateral entre os Estados Unidos e a Europa, e envereda por associações psicoanalíticas e antropomórficas, a fim de trazer à tona o inconsciente da opinião pública alemã.
Sloterdijk denuncia diferentes formas de censura que se estratificaram no "plasma do sentido" do inconsciente político alemão: a censura parlamentar, a censura de dizer as coisas claramente, de articular o explícito. Em seu lugar, instalou-se a cultura da desconfiança exacerbada, dos porta-vozes da "guerra civil semântica", que nunca dizem o que pensam.
Os répteis que se banham descaradamente ao sol
Quem são esses fazedores de opinião que supostamente representam a alma da sociedade alemã? A resposta do filósofo não podia ser mais contundente: são os pequenos répteis que se arrastam sorrateiramente de suas tocas, para desfrutar, descaradamente, de uns poucos momentos da luz do sol.
A consciência política tornou-se venenosa. Em vez de dizer as coisas claramente, adotou a postura dissimulada dos répteis, que surgem se arrastando, se infiltram no inconsciente coletivo. Temas como o antifeminismo, anti-americanismo e anti-semitismo formam a trindade tabu deste plasma clandestino. São os pseudo-intelectuais dos folhetins, e não mais os políticos, que supostamente tratam de desmascará-lo.
"As opiniões são para serem expressas." Quando isto não mais acontece, quando os répteis se escondem dentro de suas tocas, e só as deixam se arrastando, por alguns momentos apenas, então a guerra, com a sua capacidade de simplificar tudo, chegou de novo à cabeça dos alemães, denuncia Sloderdijk.
Para os interessados na história, a tevê irá mostrar brevemente os homens ocidentais que, com a despreocupação dos criminosos, dizem exatamente o que pensam das mulheres, americanos e judeus.
Sloderdijk invoca aqui o sombrio passado alemão, para lançar um sério alerta ao presente: não seria justamente este comportamento de "réptil" que levou os alemães a esconderem-se neste "plasma do inconsciente coletivo", fechando os olhos às atrocidades nazistas?