Como é feita a documentação de crimes de guerra na Ucrânia
28 de março de 2023Mais de 75 mil crimes de guerra cometidos pelo exército de Moscou foram registrados por autoridades ucranianas desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022. Investigadores, promotores e órgãos internacionais de investigação trabalham sob pressão para assegurar evidências e entrevistar testemunhas. No entanto, devido ao grande volume de crimes, pode levar décadas para que a maioria dos culpados seja conduzida a um julgamento.
Nesse processo, eles têm um apoio importante: mais de 30 ONGs ucranianas, reunidas na associação de direitos humanos Ukraine 5 AM Coalition– o nome refere-se à hora da manhã de 24 de fevereiro de 2022 quando explosões acordaram os habitante de diferentes cidades da Ucrânia. O objetivo desse grupo é dar voz às vítimas e buscar a punição não só dos autores diretos dos crimes, como também dos líderes do governo em Moscou.
Algumas das organizações da Ukraine 5 AM Coalition têm reunido provas de crimes de guerra desde a anexação ilegal da Crimeia pela Rússia em 2014. Agora, compartilham suas experiências com colegas da sociedade civil e representantes de autoridades investigativas.
"Nenhum país está preparado para resolver todos os crimes de guerra. Na Ucrânia também não havia essa experiência até 2014, então a sociedade civil teve que intervir", afirma Roman Avramenko, diretor da organização Truth Hounds, que documenta essas violações.
Linha direta e testemunhos
Avramenko avalia positivamente a parceria entre autoridades e ativistas de direitos humanos. As ONGs coletam depoimentos de vítimas por meio de linhas diretas e nos locais dos crimes, trocam informações com agências governamentais através de um banco de dados eletrônico especialmente criado para essa finalidade e, em alguns casos, até conduzem as próprias investigações.
Às vezes, as ONGs chegam a treinar investigadores ucranianos para reconhecer o que, de fato, são crimes de guerra. A diretora do centro de direitos humanos Zmina, Tetyana Peschonchyk, cita como exemplo deportações forçadas que nem as autoridades policiais e nem as próprias vítimas haviam percebido se tratar deste tipo de violação.
"Em missões de campo, a Zmina documentou 233 casos de deportação, por exemplo, em aldeias na região de Kharkiv, na fronteira com a Rússia. E em conversas, descobrimos que quase nenhuma das vítimas havia relatado isso às autoridades policiais. Muitas vezes, os afetados sequer entendem que foram vítimas de um crime, porque as deportações foram disfarçadas de evacuações", explica.
Ainda mais complicada é a situação de jornalistas e ativistas que foram detidos em territórios ocupados pela Rússia, afirma Olha Skrypnyk, do Grupo de Direitos Humanos da Crimeia. Segundo a ativista, muitas vezes, o desaparecimento dessas pessoas é reportado apenas pelos seus familiares e, como não há uma acusação formal contra os detidos, eles praticamente não têm proteção legal. Assim, a rede de contato das ONGs é a única forma de descobrir em que prisão russa eles estão.
"Já sabemos de pelo menos 110 presos em um novo centro de detenção em Simferopol [na Crimeia ocupada pela Rússia]. Mas as possibilidades de localizar essas pessoas e verificar sua situação são muito restritas. A Rússia não quer reconhecer oficialmente muitos deles como prisioneiros de guerra, o que torna sua libertação praticamente impossível", explica Skrypnyk.
De apelos agressivos ao ecocídio
Oksana Romaniuk, diretora do Instituto de Informação de Massa (IMI) da Ucrânia, que documenta crimes contra jornalistas há anos, disse que mais de 500 crimes contra representantes da mídia foram registrados desde o início da guerra.
Para ela, o termo "desinformação" foi aplicado de forma incorreta por anos. "Quando falamos de propaganda russa, tendemos a esquecer que, na realidade, se trata de uma forma extrema de discurso de ódio. Nesse ano, ela se tornou extremamente agressiva, com apelos diretos de genocídio, para bombardear alvos civis e assassinar ucranianos. Tudo isso pode ser atribuído até às doutrinas de Putin", destaca.
O IMI trabalha para que a propaganda agressiva seja reconhecida como um crime, mas admite que o direito internacional ainda não a descreve legalmente tal delito.
"Para mim, está claro que isso constitui um crime contra a humanidade e um crime de agressão, mas essa dimensão não é descrita em nenhum lugar. Por isso, enfrentamos o desafio de garantir que esses propagandistas sejam punidos pela justiça, inclusive em nível internacional", ressalta Romaniuk.
Ecologistas ucranianos que tentam documentar o crime de ecocídio, que também é bastante incomum para o direito internacional, enfrentam um problema semelhante.
Evidências confiáveis
As ONGs procuram estabelecer uma cooperação efetiva com as autoridades judiciárias, mas as especificidades da lei penal significam que as provas nem sempre podem ser usadas ou seu uso pode ser complicado.
"Adicionar um vídeo do YouTube ou um artigo de um jornalista aos autos, por exemplo, requer uma variedade de procedimentos, e os tribunais geralmente os classificam como provas inadmissíveis", diz Olga Reshetylova, cofundadora da Iniciativa de Mídia para os Direitos Humanos da Ucrânia.
As ONGs geralmente recebem imagens e vídeos por meio de mídias sociais, mas é difícil determinar se o material é autêntico e se o remetente é confiável. Para resolver esse problema, a Associação Nacional de Advogados da Ucrânia (UNBA) está promovendo o aplicativo eyeWitness to Atrocities, desenvolvido pela International Bar Association (IBA).
A tecnologia torna impossível a falsificação de imagens e vídeos, registrando as coordenadas exatas de onde foram gravadas e carregando todos os dados em um servidor seguro, explica Dmytro Hladkyi, advogado de Zaporíjia.