Como uma creche se tornou pivô de um escândalo na Alemanha
7 de novembro de 2023Uma creche que atende cerca de 70 crianças numa cidade pouco conhecida do estado da Saxônia-Anhalt, no leste alemão, viu-se no meio de uma tempestade política no país que gerou repercussões internacionais, levantando debates sobre antissemitismo, migração e preservação da cultura de lembrança do Holocausto na Alemanha.
A controvérsia eclodiu quando um jornal regional apontou no último fim de semana que a direção da Creche Anne Frank, na cidade de Tangerhütte, de 11 mil habitantes, tinha colocado em marcha um plano para rebatizar o local.
Pelo plano, o nome atual, que remete a uma das mais famosas vítimas do Holocausto, a adolescente judia alemã Anne Frank (1929-1945), seria abandonado em favor de algo mais genérico: "Explorador do Mundo", como parte de uma iniciativa de reformulação completa do local.
Após a má repercussão, as autoridades locais indicaram um recuo no plano de rebatizar a creche e afirmaram que nenhuma decisão sobre a mudança havia sido oficializada.
O momento em que a história eclodiu – na esteira de massacres de judeus pelo Hamas, guerra no Oriente Médio e aumento de incidentes antissemitas na Alemanha – somado a falas controversas da diretora da creche e do prefeito local provocaram imediatamente condenação sobre os planos.
A história chegou originalmente a um jornal regional após duas mulheres que moram na cidade terem manifestado indignação com a mudança. A Creche Anne Frank tem esse nome desde 1970, quando a Saxônia-Anhalt ainda era parte da antiga Alemanha Oriental.
Procurada pelo jornal Volksstimme, a diretora da creche, afirmou que a mudança já vinha sendo planejada há meses, e que refletia o desejo da administração e de alguns pais por um nome "menos político”.
Segundo o jornal, a diretora ainda mencionou que a história de Anne Frank era difícil de ser contada para crianças pequenas. Já o prefeito da cidade, o empresário Andreas Brohm (sem partido), destacou que a mudança de nome era apenas parte de "um novo conceito” para a creche. "É importante para o estabelecimento fazer com que esta mudança conceitual seja visível para o mundo exterior", disse ao Volksstimme.
Críticas na Alemanha
Após a revelação dos planos e a divulgação das falas da diretora da creche e do prefeito, a ONG alemã Miteinander e.V., dedicada ao combate ao racismo e extremismo de direita, afirmou que a mudança de nome "emitia um sinal errado em um momento de crescente antissemitismo". "Existem conceitos pedagógicos bons e testados para transmitir o tema da vida de Anne Frank a crianças e jovens", completou a ONG.
O Comitê Internacional de Auschwitz, fundado por sobreviventes do campo de concentração nazista, por sua vez, acusou os defensores da mudança de apresentarem "argumentos tolos” para justificar a proposta.
"Se alguém está disposto a apagar tão casualmente a sua própria história, especialmente nestes tempos de renovado antissemitismo e extremismo de direita... Isso só pode deixar alguém profundamente preocupado com a cultura da memória no nosso país", disse o líder do comitê, Christoph Heubner.
O secretário de Economia do estado da Saxônia-Anhalt, Sven Schulze, disse que o seu partido, a conservadora CDU, se posicionaria contra a mudança de nome da creche Anne Frank. "Não apenas nos dias de hoje, mas em geral, tal proposta é completamente absurda e mesquinha”, disse.
Críticas também partiram de deputados na Assembleia estadual. Henriette Quade (A Esquerda) disse ao jornal taz: "Penso que querer mudar o nome da creche é um sinal errado, levando em conta o onipresente antissemitismo."
Caso alimenta xenofobia
A matéria do jornal Volksstimme, que desencadeou a tempestade política, mencionou ainda que a diretora da creche, em sua lista de justificativas para a mudança de nome, afirmou que o nome Anne Frank também tinha pouco significado para pais de origem imigrante que usavam os serviços da creche. Essa era apenas um dos vários argumentos apresentados, mas foi o que imediatamente chamou a atenção de vários sites estrangeiros.
Alguns sites de direita incluíram frases como "pressão de pais imigrantes" e "mudar o nome para não ofender pais imigrantes". Mas essas observações não constavam na reportagem original do jornal Volksstimme que serviu de gatilho para a controvérsia e também não constaram em entrevistas de outros jornais alemães.
A inclusão enganosa dessas frases serviu de deixa para influencers de direita nas redes sociais passarem a apontar para muçulmanos, "identitários" e "pessoas woke" como responsáveis pela mudança de nome.
Apesar da referência aos "pais com origem imigrante", a Saxônia-Anhalt, estado do leste alemão onde fica Tangerhütte, é notória por ser pouco atraente para estrangeiros e tem no país uma das menores proporções de imigrantes entre a população geral (7,4%). Em Tangerhütte, por sua vez, a proporção é ainda menor, segundo dados de 2020, que apontam 3,8%, ou cerca de 400 pessoas.
A referência aos pais imigrantes na reportagem original do Volksstimme também não aponta a quais estrangeiros a diretora se referiu.
Alguns veículos da imprensa alemã também destacaram, em entrevistas com habitantes locais, que a maioria dos poucos estrangeiros em Tangerhütte vem de países do leste europeu, como Rússia e Ucrânia – e não de países de maioria muçulmana. Uma fotografia da creche de 2022, que registrou várias crianças atendidas no local, mostra exclusivamente pessoas de aparência branca.
"Honestamente, não consigo imaginar que a mudança de nome se deva a residentes imigrantes, como se diz agora. Aqui em Tangerhütte temos principalmente ucranianos e russos – quase nenhum residente árabe", disse uma habitante local ao jornal Bild.
A Saxônia-Anhalt é mais conhecida por ser um reduto eleitoral do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), que já se envolveu em diversas controvérsias em relação ao Holocausto e que recentemente teve até um deputado estadual preso na Baviera por suspeita de exibição de material nazista. Nesta terça-feira (07/11), o diretório da AfD na Saxônia-Anhalt tambémpassou a ser enquadrado como uma organização extremista de direita e de agora em diante será acompanhado pelos serviços de inteligência a fim de prevenir riscos à segurança interna.
Em Tangerhütte, a cidade da creche Anne Frank, cerca de 25% da população local votou na AfD na última eleição.
Após a repercussão, o jornal Volksstimme, onde a história eclodiu originalmente, denunciou que o caso estava sendo instrumentalizado para alimentar fake news em sites de direita.
"É chocante a insensibilidade, quase ignorante, da creche e do prefeito no debate público sobre o nome. Apesar de todas as críticas, eles não merecem ser vítimas de notícias falsas de portais de direita na internet. O fato de Tangerhütte estar agora sendo instrumentalizada de forma completamente infundada para incitar ao ódio contra os muçulmanos é assustador", escreveu o repórter Robert Gruhne, nas páginas do Volksstimme.
Má fama anterior motivou mudança de nome, segundo site
Um dos poucos portais nacionais da Alemanha que se dedicou a entender melhor o contexto da história, o t-online indicou que o plano desastroso de rebatizar o local parece ter sido motivado por uma mistura de ignorância histórica e uma tentativa de apagar a má fama da creche, que havia passado por problemas em 2022 – e não por antissemitismo de habitantes locais ou pressão de pais imigrantes.
Segundo o t-online, o "novo conceito" propagandeado pelo prefeito para a creche foi lançado após diversos problemas de administração em 2022. De acordo com a reportagem, a Creche Anne Frank era regularmente alvo de insatisfação de pais. A gota d'água ocorreu após funcionários serem acusados de consumir álcool durante uma festa no local. Após esse episódio, o quadro de cuidadores foi renovado – e não de forma voluntária – e uma nova equipe foi trazida. O currículo também foi reformulado.
O plano, formulado de maneira vaga, citava que a creche passaria a incentivar a "livre iniciativa". Nessas discussões, o nome genérico "Explorador do Mundo" surgiu. O abandono de "Anne Frank" era mais um passo na direção para apagar a má fama que marcava a creche e simbolizar a chegada do tal "novo conceito”. No entanto, a má repercussão mostrou que tudo deu errado.
Ao t-online, a vereadora local Edith Braun, que em agosto criticou os planos de mudança de nome durante um debate na Câmara de Tangerhütte, avaliou que "[o novo] conceito não deveria ter sido combinado com uma mudança de nome". "Isso foi uma vergonha para Tangerhütte", disse.
Rachadura na cultura de lembrança alemã
Braun também sugeriu que os responsáveis não tinham ideia das implicações de retirar o nome Anne Frank da creche.
"É uma questão geracional e uma questão de educação política. Eles não têm consciência do que Anne Frank quer dizer, de como ela representa o desejo de liberdade e de democracia e de como representa uma mensagem de 'nunca mais'. Na década de 1990, isso teria sido inimaginável. Hoje todo mundo está cego", disse, ao t-online.
Um diretor da ONG Miteinander eV também avaliou o caso como uma rachadura da cultura de lembrança do Holocausto na Alemanha. "A lembrança é muitas vezes vista como um fardo político e não como uma oportunidade para trabalhar com crianças", disse Pascal Begrich.
A historiadora Katja Hoyer, autora de um recente livro sobre a Alemanha Oriental, também manifestou preocupação com o fato de "alguns gestores da educação e autoridades pensarem que um nome genérico como 'Explorador do Mundo' tem mais relevância para os jovens alemães de hoje do que a história de uma criança que foi assassinada no seu país há apenas algumas gerações".
Hoyer criticou especialmente a fala da diretora da creche sobre a administração desejar um nome "menos político" para o local. "Anne Frank não é uma figura ‘política'. Ela não morreu por suas convicções ou ações. Ela foi assassinada simplesmente por ser quem ela era", escreveu Hoyer.