Como a política migratória de Biden afeta latino-americanos
22 de janeiro de 2021As imagens são indignas da civilização humana: forças de segurança usam gás lacrimogêneo e cassetetes para atacar pessoas, incluindo mulheres e crianças. Isso aconteceu há pouco menos de uma semana na América Central, mais especificamente na Guatemala. A primeira "caravana" de migrantes, como é chamada, só pôde ser detida à força.
Grupos isolados provavelmente seguiram adiante rumo ao norte, para os Estados Unidos. Mas a maioria – de um total de 9 mil pessoas, segundo a imprensa – bateu em retirada de volta para sua terra natal, Honduras.
"A caravana de Honduras reflete a esperança de muitos migrantes ligados ao novo presidente dos Estados Unidos", diz Victor Clark, professor da Universidade Estadual de San Diego e diretor do Centro Binacional para os Direitos Humanos, na cidade fronteiriça de Tijuana, em entrevista à DW por e-mail.
Clark chama atenção para o isolamento do país sob o comando de Donald Trump nos últimos quatro anos. Muito antes da presidência do republicano, um muro de concreto e aço já separava Tijuana, no México, da rica Califórnia. "Sob Trump, parte dele [do muro] foi modernizada, o que fez com que ficasse ainda mais difícil entrar nos EUA."
"Pior não pode ficar"
Com Biden no poder, ativistas de direitos humanos como Clark esperam uma mudança de estratégia. "É possível que estejamos alimentando expectativas demais, mas pior, na verdade, não pode ficar."
Imediatamente após a posse, o novo governo Biden já tratou de enviar sinais claros: o muro – o projeto de estimação de Trump – terá seu financiamento cancelado.
Biden também enviou um projeto de lei ao Congresso em que estipula que indivíduos sem permissão de residência nos EUA devem ter a chance de obtê-la – e, a longo prazo, até mesmo de conseguir cidadania americana. Tal medida pode afetar cerca de onze milhões de pessoas.
Além disso, o novo presidente americano ordenou uma suspensão das deportações por cem dias, período durante o qual as regulamentações de imigração do país serão revistas.
Biden também está buscando um equilíbrio na linguagem: a palavra alien (estrangeiro), por exemplo, deve ser substituída por noncitizen (não cidadão) em todos os textos legais, a fim de reconhecer "os EUA como uma terra de imigrantes".
Michael Shifter, diretor do think tank latino-americano The Dialogue, em Washington, aposta agora em uma abordagem mais humana em relação às questões migratórias. "Haverá um afastamento das políticas restritivas e cruéis de Trump", previu Shifter em resposta a um pedido da DW.
As expectativas são altas sobretudo na América Central, particularmente em torno do chamado triângulo (formado por Honduras, Guatemala e El Salvador). A pandemia de coronavírus, desastres naturais e uma situação econômica precária deixam muitas pessoas sem outra escolha senão a migração, argumenta Inés Klissenbauer, consultora regional da organização de ajuda humanitária Adveniat para a América Latina.
"As pessoas não fogem do nada, e sim por pura necessidade," afirma. Klissenbauer acredita que Biden deverá priorizar os migrantes que vivem há muitos anos nos EUA sem autorização de residência.
Isolamento, estigma e militarização
Mas também ainda há muito a se fazer ao sul da fronteira com os EUA. Um exemplo é o decreto Remain in Mexico (Fique no México), emitido por Donald Trump. Com ele, foram deportadas cerca de 60 mil pessoas para o México nos últimos dois anos. Lá, elas aguardam – algumas há anos – pelo processo do pedido de refúgio.
A organização de direitos humanos Human Rights Watch, que pede o fim do decreto, denuncia ainda casos de violência doméstica, estupros e traumas do outro lado da fronteira americana.
A militarização da fronteira meridional como parte do programa Frontera Sur também adquiriu novos contornos sob Trump: suas ameaças tarifárias às exportações mexicanas levaram o atual presidente do México, Manuel López Obrador, a dificultar ainda mais a passagem de migrantes vindos da América Central. Tal blindagem é confirmada por Victor Clark, que agora tem observado praticamente apenas refugiados internos do México chegando a Tijuana. Em parte, isso se deve à pandemia, reconhece Clark, mas também ao crescente reforço da fronteira sul entre o México e a Guatemala.
Inés Klissenbauer, da Adveniat, espera acima de tudo que, com Biden, "a migração para os EUA seja novamente possível em condições regulamentadas" e que a política de "isolamento, estigmatização e militarização" chegue a um fim.
Além disso, continua, há urgência na criação de programas de proteção para pessoas particularmente vulneráveis. Como modelo, já existe o "Status de Proteção Temporária" (TPS), por exemplo, introduzido pelo ex-presidente George Bush. Ele permitia que pessoas oriundas de guerras civis ou desastres naturais obtivessem residência temporária e autorização de trabalho nos EUA. A lei, no entanto, foi suspensa por Trump.
Biden, que se diz muito próximo dos latino-americanos, também pretende combater as "causas profundas" da migração. Em uma carta ao Congresso, ele prometeu enviar 4 bilhões de dólares para El Salvador, Honduras e Guatemala, países de origem da maioria dos migrantes em caravana, nos próximos quatro anos.
Para Klissenbauer, focar nas causas do problema deve ser justamente a maior prioridade do novo governo. "A cada dia, fogem 150 pessoas de Honduras. Enquanto a situação nesses países estiver assim, nada vai mudar."
Risco de uma nova cultura de boas-vindas
Mesmo que tudo aponte para uma mudança na política de migração, o governo Biden também terá que implementar suas diversas promessas politicamente. O próprio Barack Obama, antecessor de Trump, também foi bastante restritivo quanto à migração, com o número de deportações disparando em seus primeiros anos no cargo.
O programa Frontera Sur, aliás, hoje muito criticado, é da era Obama – de quem Biden foi vice-presidente por oito anos e cujas tentativas de reformar as leis de imigração fracassaram.
Michael Shifter, do think tank The Dialogue, acredita que Biden é capaz de obter sucesso onde seus antecessores falharam. Mas ressalta que, como bem sabe Biden, uma cultura de boas-vindas completamente nova "também envolve grandes riscos e pode desencadear movimentos de refugiados difíceis de controlar". Shifter supõe, portanto, que Biden seguirá uma estratégia clara, mas de forma "lenta e cuidadosa".
Em Tijuana, os migrantes que restaram voltaram a ter esperança. "Sobretudo de que poderão pedir refúgio novamente", diz Victor Clark. Mas o ativista de direitos humanos não acredita que algo vá mudar radicalmente da noite para o dia – ele já viu presidentes demais para isso. Desde então, o muro em frente à sua casa fica cada vez mais espesso. "Hoje ele faz parte da nossa paisagem urbana de fronteira. E não vai desaparecer. Também não consigo imaginar isso."