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Com referendo, Erdogan desafia também legado de Atatürk

Com a consulta popular sobre o sistema presidencialista, presidente não quer só mudar a forma de governo. Referendo é também uma votação sobre a identidade cultural do país.

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Recep Tayyip Erdogan em frente a retrato de Atatürk
Presidente Erdogan em frente a retrato do fundador da República da Turquia, Mustafá Kemal, conhecido como AtatürkFoto: picture-alliance/AP Images/K. Ozer

O pedido do califa foi modesto. Durante a Oração da Sexta-Feira, ele explicou que gostaria de usar um turbante no estilo do sultão Mehmed 2°, do século 15. Ele gostaria de saber do presidente se ele teria algo contra esse desejo. Há somente poucos meses no poder, o chefe de Estado deu uma resposta brusca: o califa deveria usar um sobretudo, como é usual entre estadistas modernos. O próprio califado, diria o presidente mais tarde, era uma ideia absurda.

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A cena descrita pelo historiador turco Şükrü Hanioglu em sua biografia do primeiro presidente da república turca, Mustafá Kemal, mais tarde chamado de Atatürk (pai dos turcos), é sintomática da forma rude e resoluta com a qual ele combatia as tradições religiosas e políticas do recém-extinto Império Otomano. Com o mesmo rigor, Kemal agiu ao defender a extinção do cargo de imã responsável pela Assembleia Nacional. "Aqui não precisamos de orações", justificou o presidente. Para Atatürk, afirma Hanioglu, havia só uma religião: a secular, a da república.

Reformas dolorosas

Tais posições foram recebidas com reservas por grande parte da população. Enquanto nas cidades a elite educada saudava as reformas de Kemal, a maioria tradicionalista não queria saber delas: nos tribunais, passou-se a jurar não mais pelo nome de Deus, mas pela própria honra; em 1937, o laicismo se tornou um dos princípios fundamentais da república turca; a introdução do calendário gregoriano; a troca do chapéu turco (fez) pelo europeu; a substituição do alfabeto árabe pelo latino; a introdução do domingo como novo feriado semanal no lugar da sexta-feira; e o estabelecimento do sufrágio feminino em 1934.

Atatürk entrou para a história da República da Turquia como um modernizador, como o seu representante mais importante até hoje – ao menos nas comemorações oficiais. Mas, na verdade, explica Hanioglu, Kemal e seus correligionários ignoraram a realidade da sociedade turca. "A liderança da antiga república subestimou da forma mais repreensível possível a resistência das relações sociais na sociedade muçulmana. Da mesma forma que muitos intelectuais europeus no fim do século 19 e começo do século 20, eles acreditavam firmemente na convicção – que se mostrou enganosa em retrospecto – de que a religião em breve se tornaria não mais que uma vaga lembrança de um passado remoto."

O adversário

Ao tentar impor um sistema presidencialista, o atual presidente Recep Tayyip Erdogan deve também estar pensando no legado de Mustafá Kemal, diz o especialista Caner Aver, do Centro de Estudos Turcos e Pesquisa de Integração, de Essen. Possivelmente Erdogan pretende entrar para a história como o estadista mais importante depois de Atatürk. E outra coisa o motiva: "Ele quer o poder absoluto. Para isso precisa de uma mudança constitucional, pois só assim o sistema presidencialista pode se assegurar constitucionalmente", diz Aver.

Convenientemente, em 2023 o país celebra o seu centésimo aniversário, lembra o geógrafo. "Erdogan quer ser visto como o homem forte que tirou a Turquia da atual situação de crise, tanto interna quanto no conflito com seus países vizinhos, e a conduziu para o futuro."

A fim de obter apoio suficiente para o proposto sistema presidencialista, Erdogan está de olho naquela maioria da população que vem rejeitando, há mais de um século, as reformas de Atatürk. Para isso, ele também toma medidas de forte caráter simbólico: construiu uma enorme mesquita sobre uma colina com vista para o Bósforo; elevou o imposto sobre o álcool e o proibiu de ser servido nas proximidades de mesquitas, dificultando a vida de muitos donos de bares e restaurantes nos bairros de influência europeia. Além disso, fez com que as mulheres pudessem usar novamente o véu islâmico em instituições estatais, como universidades, tribunais e no Parlamento.

Taksim Platz Gezi Park Istanbul Türkei
Em nome da república, manifestantes seguram retrato de AtatürkFoto: Reuters

Votação sobre identidade cultural

Erdogan provém de um meio nacionalista, conservador e religioso. "Então, quando ele atingir seus objetivos, vamos nos deparar cada vez mais com elementos desse tipo no aparato estatal", afirma Aver, ressaltando, no entanto, ser improvável que o país venha a se tornar uma república islâmica. "Mas o teor nacionalista, conservador e islâmico passará a ser notado mais acentuadamente do que hoje nas estruturas e, possivelmente, também na legislação, na vida pública, na educação e no meio acadêmico", ressalta o especialista.

Erdogan quer reorganizar politicamente a Turquia. Ele também trabalha nessa reestruturação com instrumentos culturais, através dos quais ele se define como uma força ideológica oposta a Atatürk. Para Hanioglu, a Turquia é moderna só na superfície. O atual presidente turco tira proveito das energias conservadores latentes no país. Por isso, o referendo sobre o sistema presidencialista é também uma votação sobre a identidade cultural do país.

Kersten Knipp
Kersten Knipp Jornalista especializado em assuntos políticos, com foco em Oriente Médio.