Clarice Lispector, 98 anos
10 de dezembro de 2018Se consideradas as circunstâncias em que a vida de Clarice Lispector começou, sua trajetória tem um caráter quase miraculoso. Nascida em 10 de dezembro de 1920, numa cidade minúscula da Ucrânia, fugindo de pogroms contra a população judaica do continente eurasiano, chegando ao Brasil com os pais, imigrantes pobres, sem falar a língua – o nascimento e a sobrevivência desta mulher parecem tão excepcionais quanto sua obra. Tinha o mundo contra si, mas ao morrer, aos 57 anos, havia doado à língua portuguesa e à literatura mundial alguns dos textos mais assombrosos do seu século.
Não é literatura para todos, apesar de sua imensa popularidade. Mesmo sua popularidade é um caso estranho, estando entre os poucos autores que geram tanto o entusiasmo de especialistas quanto a paixão dos mais simples leitores. Em sua entrevista já mencionada muitas vezes, ela se refere a uma leitora de 17 anos, que tinha por livro de cabeceira seu romance A Paixão segundo GH (1964), o mesmo livro discutido com profundidade por um filósofo e crítico brasileiro como Benedito Nunes. São dois exemplos do alcance amplo de sua escrita.
O fenômeno em torno de seu nome vinha crescendo desde a publicação da biografia de Benjamin Moser, Why This World: A Biography of Clarice Lispector, lançada em 2009 nos Estados Unidos, seguida de novas traduções para 5 de seus maiores romances – no Brasil, a biografia foi lançada no mesmo ano pela editora Cosac Naify com o título Clarice, uma biografia. Mas o que se viu com a publicação de seus contos reunidos foi espantoso: o primeiro autor brasileiro na capa do New York Review of Books, recebeu resenhas de Los Angeles a Sydney, passando por Londres.
Escritora brasileira para o mundo
Moser acredita que ainda serão necessárias gerações de professores, jornalistas, críticos e leitores falando e escrevendo sobre Clarice Lispector para que ela tenha um papel no cânone ocidental, como Kafka, Joyce ou Woolf. "O que quis fazer primordialmente foi informar as pessoas que a obra de Clarice Lispector existe, tornar seus livros acessíveis em boas traduções, especialmente em minha própria língua. Prover um contexto crítico e biográfico para que ela fosse compreendida. E então deixar que sua obra mesma fizesse seu caminho pelo mundo", disse o biógrafo e tradutor à DW Brasil.
Moser certamente fez sua parte, traduzindo novamente A Hora da Estrela (1977) e coordenando para a editora americana New Directions – além da Penguin, na Inglaterra –, traduções para Perto do Coração Selvagem (1943), A Paixão segundo GH (1964), Água Viva (1973), Um Sopro de Vida (1978) e O Lustre (1946), assim como a edição dos contos reunidos (muito bem traduzidos por Katrina Dodson). Uma parte central da obra de Clarice Lispector está agora disponível a todos os que falam inglês.
Clarice na Alemanha
Com o ímpeto que a Clarice anglófona tomava no mundo e a participação do Brasil como convidado de honra da Feira do Livro de Frankfurt em 2013, a autora foi uma das que receberam mais visibilidade oficial naquele ano na Alemanha. Foram lançados a biografia de Moser e traduções novas para seus dois primeiros romances, com os títulos Nahe dem wilden Herzen, traduzido por Ray-Güde Mertin e Corinna Santa Cruz, e Der Lüster, em tradução de Luis Ruby.
A editora Schöffling & Co. apresentou em 2016 uma nova tradução de A Hora da Estrela, com o novo título Der grosse Augenblick. As novas traduções na Alemanha podem não ter sido recebidas com o estardalhaço que receberam no EUA, mas houve artigos entusiasmados em jornais importantes como o Frankfurter Allgemeine Zeitung e o Süddeutsche Zeitung.
Por décadas, o autor brasileiro mais conhecido no mundo foi Jorge Amado, primeiramente por seus romances engajados na Alemanha Oriental, e mais tarde na Alemanha Ocidental, com o sucesso de Dona Flor e seus Dois Maridos (1966). Nos últimos anos, o sucesso do filme Cidade de Deus catapultou Paulo Lins para o cenário internacional, e Paulo Coelho seguiu sendo o best seller do país.
Nos últimos anos, Clarice Lispector desperta a paixão em novos leitores pelo mundo, assim como conquista novos leitores a cada geração no Brasil. Sobre o legado de Clarice Lispector hoje, uma das maiores autoras brasileiras vivas, Márcia Denser, a autora de O Animal dos Motéis, de 1981, escreveu: "Clarice Lispector jamais foi minha leitura de sustentação, ela não integra meu paideuma composto por Faulkner, Fonseca, Cortázar, Capote. Mas Clarice é uma escritora essencial: você pode não gostar dela, mas Lispector continuará lá, intacta, perfeita como uma laranja pode ser perfeita: nada a acrescentar, nada a tirar."