Cinco anos pós-Kadafi, Líbia segue refém da violência
21 de outubro de 2016Aviões de combate dos EUA executaram mais de 30 ataques aéreos, nesta semana, com o objetivo de aniquilar posições da organização extremista "Estado Islâmico" (EI) na cidade de Sirte, na Líbia. Ações como essa, cinco anos depois de uma ação militar por razões humanitárias para salvar insurgentes da repressão de um ditador, lançam dúvidas sobre os resultados dessa intervenção.
De certa forma, Sirte representa a história recente da Líbia. Há cerca de um ano e meio a cidade de 130 mil habitantes é o centro da organização terrorista "Estado Islâmico" no país – embora o EI já tenha sido em grande parte expulso da cidade. Mas Sirte é também o local de nascimento do ditador Muammar Kadafi. E justamente próximo de sua cidade natal, enquanto fugia dos rebeldes, Kadafi foi morto de forma violenta em 20 de outubro de 2011.
O fato de que, mesmo cinco anos depois do fim da era Kadafi, caças americanos tenham de combater milícias terroristas comprova que a intervenção da Otan no país norte-africano teve um resultado completamente diferente do que se esperava, principalmente em Paris, Washington e Londres.
As esperanças associadas com a queda do ditador, de construir uma sociedade livre, democrática e aberta, não foram cumpridas. Pelo contrário: a Líbia está afundada no caos. Não há um governo funcional. Em vez disso, vários governos paralelos lutam pelo comando do país.
Centenas de grupos armados vagam pelo país, no melhor dos casos fiéis a seus clãs ou warlords. Um dos poucos setores que floresce é o contrabando – de drogas, de armas e, sobretudo, de pessoas, já que o declínio do Estado transformou a Líbia num país importante na rota de refugiados a caminho da Europa.
As condições de vida da população na Líbia deterioraram significativamente após a queda de Kadafi. "Falta energia constantemente. Em Trípoli houve 109 sequestros só em setembro. Dinheiro em espécie é escasso, e as pessoas gastam muito do seu tempo esperando na frente de agências bancárias, que têm apenas um punhado de euros", comenta Mattia Toaldo, do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR). "O cotidiano, as condições de segurança e a situação econômica pioraram."
Avaliação errônea em 2011
Em 2011, afirma o ex-embaixador alemão na Líbia Christian Much, todos os envolvidos tiveram uma ideia errada sobre o futuro da Líbia – tanto os líbios como a comunidade internacional. Posteriormente, questões locais se revelaram importantes obstáculos ao desenvolvimento do país. "Um elemento importante foi a não criação de um Exército nacional logo após 2011. E as milícias, que já existiam na época, seguiram ganhando em importância – e, com isso, também o pensamento centrado em estruturas locais", analisa.
As consequências da deterioração do Estado líbio, porém, não se limitam ao território do país. Após a queda de Kadafi, rebeldes saquearam os recheados arsenais do Exército. "O fluxo de armas da Líbia foi uma das razões para o conflito no Mali", afirma Toaldo.
O presidente do Chade, Idriss Déby, vê a situação da mesma forma. "Kadafi está morto e deixaram a Líbia para grupos armados. E a África tem de lidar com as consequências desse caos", disse Déby, em entrevista à DW, durante recente visita a Berlim. Ele exige que a Europa assuma a responsabilidade por países outrora pacíficos estarem sendo aterrorizados pela organização terrorista nigeriana Boko Haram. Pois o armamento provém da Líbia.
Como criar um Exército nacional líbio sob liderança civil é uma das questões-chave para o enviado especial da ONU para a Líbia, Martin Kobler. Porém, ele não tem muito mais a oferecer a não ser apelar para um diálogo entre os diferentes grupos no país. "Este é um processo da Líbia. Os líbios precisam fazê-lo. Mas a União Africana, a ONU, a UE e a Liga Árabe estão prontas para apoiar os líbios na questão", diz Kobler.
No entanto, depois de 2011, foi justamente a influência estrangeira que intensificou o conflito interno na Líbia. Diversas milícias foram equipadas com armas e apoiadas financeiramente por diversos países. Catar e Turquia apoiam principalmente milícias do leste. Egito, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita promovem grupos armados no lado ocidental. Toaldo vê nessas interferências externas uma das principais razões para o declínio líbio rumo ao caos depois de 2011.
Primavera Árabe
A Líbia também foi atingida pela onda de revoltas que surgiram no Egito e na Tunísia no início de 2011, mais tarde chamada de Primavera Árabe. Em fevereiro daquele ano, as manifestações saíram do controle e culminaram num estado similar a uma guerra civil. A cidade de Bengasi logo se tornou o centro dos protestos. Em março, o regime de Kadafi adotou postura de retomar o controle sobre os territórios perdidos. Para isso, ele acionou a Força Aérea.
Os rebeldes exigiram uma zona de exclusão aérea. A França atendeu ao pedido e se tornou a força motriz da intervenção internacional. Depois de, inicialmente, ter apoiado o ditador Zine el-Abidine Ben Ali, na Tunísia, e apostado na sobrevivência do regime de Hosni Mubarak, no Egito, a França queria, desta vez, posicionar-se prontamente do lado vencedor. Provavelmente o país também não queria comprometer um acordo bilionário, recém-fechado, para o fornecimento de centrais nucleares à Líbia. Além disso, a França extraia cerca de 10% de seu petróleo da Líbia.
Em 17 de março, a resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU permitiu a criação de uma zona de exclusão aérea, assim como a proteção da população líbia por meios militares. A resolução também pediu um cessar-fogo imediato no país.
Em 19 de março, com o apoio de dez caças franceses, começou a intervenção militar internacional na Líbia. A operação visava atacar a ofensiva das tropas governamentais contra Bengasi. Um comboio militar foi bombardeado, e posições de artilharia foram destruídas. Ao longo de sete meses, a Otan lutou ao lado dos rebeldes, fazendo o papel de sua força aérea.
Os caças da Otan bombardearam amplamente também a cidade natal de Kadafi. Nas palavras do comentarista do diário britânico The Guardian, Seumas Hilne, Sirte foi transformada em "ruínas e cinzas, à semelhança da cidade tchechena de Grozny pelos russos".
Embora salvar vidas tivesse sido o objetivo da intervenção internacional, o próprio Conselho Nacional de Transição (CNT) estimou o número de mortes durante a revolta em cerca de 30 mil pessoas. Muitos especialistas afirmaram que o mandato da resolução 1973 foi claramente excedido.