A notícia foi um choque. Qualquer pessoa do campo progressista se abalou ao saber, na quinta-feira da semana passada, que o ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida era acusado de assédio sexual por várias mulheres. O choque aumentou quando soubemos que uma das supostas vítimas seria Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial.
O caso foi revelado pelo portal Metrópoles, que informou que a ONG Me Too teria recebido denúncias de funcionárias contra Almeida. A matéria informava que Anielle também seria vítima de importunação sexual. Depois da publicação da reportagem, a professora Isabel Rodrigues afirmou também ter sido vítima de Almeida, então seu colega, em 2019. E tem mais: uma reportagem publicada pela revista Veja noticiou a existência de rumores de que alunas de Almeida na Universidade São Judas teriam sido vítimas de assédio entre 2007 e 2012.
Na sexta-feira, Anielle confirmou a ministros que teria sido vítima de importunação sexual, segundo fontes ouvidas por vários jornais brasileiros. Almeida foi demitido do cargo pelo presidente Lula, e o caso passou a ser investigado pela Polícia Federal.
É tudo muito simbólico: Silvio e Anielle ocupam pastas que cuidam justamente de assuntos envolvidos na luta antirracista e também pelo direito das mulheres. Além disso, Silvio e Anielle são dois ministros negros em cargos de destaque, algo tão raro e importante em um país racista como o Brasil.
É tudo triste mesmo. Mas, nesse processo difícil, estamos vendo o desenrolar de algo infelizmente bem comum em casos de assédio: a revitimização de mulheres que denunciam. No caso, esse fenômeno tem atingido principalmente a ministra Anielle Franco.
Revitimização das mulheres que denunciam
Desde que passei a acompanhar o caso, já vi Anielle ser acusada de coisas horríveis e histórias sendo inventadas (algumas são tão absurdas que nem vou repetir aqui). Muitos acusam a ministra de ter destruído a carreira de um homem inteligente e brilhante, de ser irresponsável, de fazer "fuxico" –como se denúncia de assédio sexual fosse fofoca e não uma questão seríssima.
Ela também é cobrada, inclusive por outras mulheres, sobre a maneira como lidou com o assédio que sofreu. "Por que ela não denunciou antes para o presidente Lula?". "Por que se calou? Por que não se calou e comentou o acontecido com pessoas próximas? Teria ela denunciado o caso para a ONG Me Too e não para a corregedoria do governo?"
Pelo que se sabe, Anielle não denunciou, apenas desabafou e procurou conselhos com pessoas próximas e do governo. As denúncias ao Me Too teriam sido feitas por outras supostas vítimas. Mas isso importa tanto assim?
Não devemos condenar Silvio Almeida antes de ele ser investigado e o processo, concluído, é verdade. Mas é chocante (e infelizmente comum) que muitos estejam mais interessadas em desqualificar as denúncias das mulheres do que em conversar sobre assédio por parte de homens poderosos, sejam eles de direita ou de esquerda.
Saber que existem denúncias dentro do Ministério dos Direitos Humanos é realmente bizarro. Vamos encarar isso? Vamos falar sobre machismo estrutural e como a misoginia atinge inclusive homens progressistas, com trajetórias de vida e carreiras incríveis?
O caso é mais polêmico por envolver um homem negro, claro. As estatísticas mostram que é muito mais difícil um deles alcançar lugar de poder. E sabemos também que as pessoas negras são mais facilmente condenadas, mesmo que não oficialmente. Nesse caso, machismo e racismo estão em jogo. Mas não dá para simplesmente acusar mulheres e deixar de falar sobre o machismo tóxico, que existe em todo lado, inclusive dentro da esquerda.
Reflexões importantes
Em vídeos publicados no Instagram, a atriz e poeta Elisa Lucinda, ativista e mulher negra, fez reflexões importantes.
"Ele [Silvio Almeida] tem o benefício da inocência, o benefício da dúvida, claro que tem. Gosto que tudo seja investigado. E estamos falando de Silvio Almeida, o cara que luta pelos direitos humanos, o cara que estuda necropolítica! Torço para que tudo se esclareça. Mas acho que a nossa decepção, nosso temor, nossa tristeza, nossa desilusão com essa investigação e essa denúncia gravíssima, que destitui nosso primeiro ministro preto e homem, vem do nosso romantismo de achar que nossos heróis, gente que a gente admira, não estão suscetíveis a esse tipo de educação na qual foram submersos e treinados", disse.
Em outro vídeo, ela foi ainda mais direta: "Que homem você é fora da sua casa? Você também, esquerdomacho, que homem você é fora de casa? É uma pergunta, os homens têm um comportamento meio quinta-série. São analfabetos de si. Eles foram formados para serem predadores. Isso não é mais sobre Anielle Franco e sobre Silvio Almeida, é sobre nós".
É verdade. Esse momento triste deve servir para que discutamos o machismo estrutural em todas as esferas. E precisamos falar como essa sociedade machista trata mulheres que denunciam abusos. Informações de bastidores dizem que Anielle não denunciou antes, entre outras coisas, por querer poupar sua família e a família de Almeida. Quando vemos a maneira como ela está sendo atacada, percebemos que ela não estava errada em seus temores.
Esse é, realmente, um momento triste para todos que se importam com racismo e machismo.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.