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Literatura

Cony: "A letra foi minha salvação"

Luisa Frey
10 de outubro de 2013

Na Feira de Frankfurt, escritor lembrou momentos da carreira literária e jornalística. Após uma infância traumática, a dificuldade com a palavra falada resultou na intimidade com a palavra escrita.

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Carlos Heitor Cony
Foto: DW/L. Frey

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926. Publicou seu primeiro romance na década de 1950, quando também iniciou a carreira de jornalista. Escreveu para o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, e foi preso durante a ditadura militar. Hoje é cronista da Folha de S. Paulo e comentarista da rádio CBN.

Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000, coleciona diversos prêmios em sua carreira literária, incluindo três Jabutis e o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.

Como membro da comitiva de 70 autores brasileiros na Feira do Livro de Frankfurt , Cony participou de uma das primeiras leituras no pavilhão brasileiro nesta quarta-feira (09/10), sobre o tema literatura e memória e ao lado de Nélida Piñon. "Dizem que pintei a vida do meu pai de maneira muito exagerada no livro Quase memória, mas a memória é seletiva e parcial", disse ao público.

Carlos Heitor Cony lê um trecho de "Quase Memória"

Em entrevista à DW Brasil, o escritor falou mais sobre Quase Memória e sobre a feira do livro. Também contou detalhes de sua trajetória jornalística, iniciada por acaso e causa de seis prisões políticas, e da motivação para a literatura, iniciada na infância.

DW Brasil: O senhor é um dos nomes mais consagrados que integram a comitiva de autores brasileiros na Feira de Frankfurt deste ano. O senhor acredita que a feira vai trazer frutos para a literatura e a cultura brasileiras?

Carlos Heitor Cony: Sempre ajuda, mas o Brasil é um país marginal, ainda não entrou no circuito cultural do mundo. É evidente que temos algumas realizações importantes, como Villa Lobos, na música, e Niemeyer, na arquitetura, assim como temos alguns escritores que estão se fazendo mundo afora. Acredito que qualquer palhazinha que se coloque no ninho do escritor brasileiro será favorável, apesar de que no tempo de Homero não existia esse tipo de coisa e ele é conhecido até hoje.

Além da literatura, o jornalismo sempre fez parte da sua vida, começando pelo exemplo de seu pai no Jornal do Brasil. O senhor escreveu para jornais, publicou ensaios biográficos e livros-reportagens e ainda atua como colunista e comentarista. Em que se diferenciam o trabalho de jornalista e de autor de literatura? E em que campo o senhor se sente mais à vontade?

Costumo dizer que o jornalista precisa ser um peixe de aquário, que vive em águas iluminadas. Ele precisa ser visto, ser colorido e saber fazer alguns truques. Se não for um objeto de encantamento, não é bem visto. Já o escritor é um monstro, habita águas escuras. Não há ninguém que o ilumine, ele tem que se fazer sozinho, sujeito aos perigos das profundezas marinhas e aos outros bichos maiores do que ele.

Sinto-me mais à vontade como escritor. Sou jornalista por acaso. Meu pai era jornalista, precisou viajar quando eu tinha 18 anos e sugeriu que eu ficasse em seu lugar. Quando voltou, o jornal achou que eu deveria continuar. E estou no jornal até hoje.

O que representou ingressar na Academia Brasileira de Letras para sua carreira de escritor?

É uma pergunta difícil. Entrei para a ABL aos 74 anos de idade, já na época em que muitos acadêmicos estão morrendo. Tive oportunidades de entrar antes, mas recusei. Em 1964, houve um movimento no setor da cultura nacional para eu entrar, porque iriam convidar o presidente da República, o marechal Castello Branco, para ser da academia.

Eu seria uma candidatura de protesto. Mas não aceitei, porque protestava contra ele como deveria protestar: através do jornal. E fui preso seis vezes por isso. Recusei o convite muitas outras vezes por acreditar que literatura é uma coisa e política é outra, até finalmente aceitar em 2000. A ABL representa a inteligência e a cultura brasileira nesses últimos cento e tantos anos. É uma honra estar onde já estiveram Machado de Assis, Euclides da Cunha, Manuel Bandeira – pessoas de alto nível cultural e que fazem parte da história do Brasil.

O senhor ingressou no jornalismo na década de 1950 e escreveu seu primeiro romance, O Ventre, em 1955. Depois de mais de 50 anos, o que o motiva a continuar escrevendo?

O jornalismo é uma forma de atuar e também uma certa garantia. A literatura dá dinheiro razoavelmente, mas o jornalismo garante um salário no fim do mês. E às vezes eu gosto de ser jornalista. Quando houve a revolução de 1964, por exemplo, eu tinha uma coluna em um jornal de importância e comecei a escrever contra o regime. Se, por um lado, isso me rendeu seis prisões, exílio em Cuba e família perseguida, continuo tendo essa necessidade de me manifestar enquanto for possível. Não tenho partido ou uma posição concreta sobre nada, nem sobre religião, nem sobre política ou literatura. Para mim, o mais importante é a liberdade.

Quase Memória Beschreibung: Buch Quase Memória, vom brasilianischen Schriftsteller Carlos Heitor Cony bei der Frankfurter Buchmesse 2013 Schlüsselwörter: Carlos Heitor Cony, Quase Memória, Buch, Literatur, Brasilien Datum: 09.10.201 Copyright: Luisa Frey
Cony: Memória é seletiva e parcialFoto: DW/L. Frey

E a motivação para a literatura?

Eu nasci com um defeito de fala. Era mudo e só fui falar por volta dos dez anos. Quando comecei a falar, falava errado, trocava as letras. Eu era discriminado. Entrava na escola e após algumas semanas o diretor chamava meu pai e pedia que me tirasse da escola, porque estava sendo muito excluído por falar errado e estar criando traumas.

O resultado foi meu pai me ensinar. Ele muitas vezes perdia a paciência, esfregou muitas vezes meu rosto no quadro negro porque eu não acertava as contas, não conseguia escrever. E isso me marcou muito. Um dia, eu tinha sido expulso da festa de 15 anos do meu irmão, pois acharam que não ficava bem eu participar. No meu quarto, peguei um caderno e comecei a escrever as palavras que dizia errado. E descobri que ali estava meu futuro: a letra. Passei a me comunicar com as pessoas por bilhetes. A letra foi a minha salvação.

Justamente essa relação com o seu pai e essas lembranças resultaram em um de seus romances mais famosos, o Quase Memória, de 1995, que mistura ficção e autobiografia. Além de lhe render um prêmio Jabuti, que significado emocional o livro tem para o senhor?

Eu procurei fazer uma crítica afetiva ao meu pai. Ele é um exemplo de homem comum, um homem até ridículo, mas um homem que tinha vontade de ser alguma coisa. O lema dele era: "Amanha farei grandes coisas". Nunca fez grandes coisas. Morreu com 91 anos tentando. Mas ele existiu, sobreviveu, teve um filho recusado pela sociedade e expulso das escolas e disse: "vou ensinar meu filho". E ensinou. Devo meu ensino básico a ele.

Ele tinha coragem. Certo dia, ele foi a um enterro de um amigo e tinha uma mangueira cheia de mangas, conto isso no livro. No meio do enterro, todo mundo chorando, ele subiu na mangueira para apanhar manga e caiu. Foi um barulho terrível. Era um homem muito ridículo. Mas com uma grandeza humana muito grande. Eu, então, fiz esse livro não como uma homenagem a ele, mas a todos os vencidos da vida. A todos aqueles que querem fazer grandes coisas e não conseguem.