Caos político agrava pandemia na Bolívia
17 de julho de 2020O programa de televisão boliviano No mentiras tenta mostrar a verdade nua e crua, muitas vezes desconfortável, por 30 minutos – incluindo a chance também de errar o alvo. Em 17 de junho, o programa foi transmitido ao vivo a partir de um hospital na metrópole de Santa Cruz. Pela televisão, bolivianos puderam assistir em tempo real à luta pela vida de um paciente com coronavírus, enquanto os médicos tentavam desesperadamente salvar a sua vida.
O final não foi feliz. O paciente morreu, e centenas de milhares de telespectadores foram testemunhas. Enquanto muitos criticavam a cobertura sensacionalista da emissora PAT, os criadores disseram que a intenção era que programa servisse de alerta para as autoridades que falharam totalmente na luta contra a pandemia.
A Bolívia tem mais de 54 mil casos do novo coronavírus e quase 2 mil mortos em decorrência da doença confirmados, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins. Estima-se que os números sejam bem mais altos devido à subnotificação. O sistema de saúde do país está sobrecarregado, e imagens de corpos cobertos com lonas depositados nas ruas ou em frente a hospitais bolivianos rodam o mundo.
"A situação é alarmante, porque temos agora cada vez mais casos de covid-19 nas montanhas", diz o médico Fernando Patiño, de La Paz. O vírus se propagou de regiões de floresta para outras áreas nas últimas semanas.
O médico é frequentemente procurado por ser um dos melhores oncologistas do país. Ele fez pesquisas justamente na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos EUA, e coloca impiedosamente seu dedo na ferida quando fala sobre a situação do setor de saúde no país.
"Nosso sistema, seja ele público ou privado, entrou em colapso logo no início [da pandemia]. Muitas pessoas aqui simplesmente morreram sem diagnóstico e sem ajuda médica. Na região amazônica, o sistema de saúde parou até mesmo no nível de meio século atrás", afirma Patiño.
Atualmente, 42 hospitais bolivianos tratam de pacientes com o novo coronavírus, e 405 leitos de terapia intensiva estão espalhados pelo país – deles, 331 são novos. Não é suficiente, e muitas vezes os hospitais não podem aceitar novos pacientes. Acima de tudo, porém, faltam testes para detectar a covid-19. E, quando uma pessoa com sintomas é testada, o resultado demora de duas a três semanas.
A crise de coronavírus é mais um exemplo de como o sistema de saúde foi negligenciado durante décadas. "A Bolívia teve um crescimento econômico de 5% ao ano nos últimos anos, mas nada disso foi investido em hospitais ou no treinamento de médicos", relata Patiño.
Nos anos 1990, a metrópole de Santa Cruz tinha 1 milhão de habitantes e cinco hospitais. Hoje, com três milhões de moradores, ainda são os mesmos cinco hospitais.
Patiño não acredita que a Bolívia conseguirá controlar o vírus. "Eu tenho pouca esperança no curto prazo. Também não temos pessoal suficiente para controlar se a população está respeitando as regras de quarentena", diz o médico.
Um país dividido
A epidemia do novo coronavírus no país não tem a ver apenas com as carências de longa data do setor hospitalar, mas, também, em grande parte, com a política atual.
"O partido MAS politizou a pandemia. Eles disseram que o vírus era uma invenção do governo de transição de direita. E as pessoas saíram às ruas novamente por causa disso", diz Renán Estenssoro, diretor-executivo da Fundação para o Jornalismo, em La Paz.
Nesta terça-feira (14/07), milhares de manifestantes críticos ao governo protestaram contra as deficiências nos sistemas de saúde e educação, entre outros temas.
MAS é a abreviação de Movimiento al Socialismo [Movimento para o Socialismo] – o partido que, com seu presidente Evo Morales, determinou o destino da Bolívia por 13 anos, de 2006 a 2019, e, agora, está nas fileiras da oposição. Enquanto isso, Morales, que foi o primeiro chefe de Estado indígena na Bolívia, faz política a partir de seu exílio na Argentina. "Evo ainda controla a Bolívia nas ruas e sabe como mobilizar as pessoas", afirma Estenssoro.
O que aconteceu em outubro e novembro do ano passado, durante as eleições presidenciais na Bolívia, ainda pode ser lido de duas maneiras. Em uma delas, ocorreu a fuga de um presidente que tinha dobrado a Constituição ao máximo para poder se reeleger e não escapou da fraude eleitoral. Para outros, não passou de um golpe do establishment de direita com a ajuda da Organização dos Estados Americanos (OEA), controlada pelos EUA.
Como tantas vezes na América Latina, o pêndulo balançou então para o outro extremo e levou Jeanine Áñez à presidência interina do país, uma católica de extrema direita que insultou indígenas no Twitter e mandou retirar todos os retratos de Che Guevara do palácio presidencial como primeiro ato oficial. Originalmente, a política do pequeno partido liberal-conservador Movimento Democrático Social queria permanecer como presidente interina até as novas eleições em maio de 2020.
Mas Áñez parece ter gostado cada vez mais do poder, e aí veio o coronavírus. Agora, a representante da elite econômica branca permanecerá no cargo – sem legitimidade democrática, sem maioria parlamentar e sem apoio popular – até as novas eleições, marcadas para 6 de setembro. De acordo com pesquisas, do início de sua presidência interina para cá, sua popularidade caiu de 30% para 7%.
E agora Áñez está em quarentena com alguns de seus ministros após testar positivo para covid-19. "Que Deus esteja conosco", afirmou a presidente interina que, por causa da crise de coronavírus, pode agora bem imaginar adiar mais uma vez as eleições.
O partido MAS e Evo Morales já anunciaram que vão protestar contra um novo adiamento, o qual, para Estenssoro, seria o pior cenário possível. "Se as eleições forem adiadas novamente, teremos não só mortos por coronavírus, mas também uma violência renovada nas ruas", conclui o jornalista.
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