Cantora Mariza celebra o fado e a lusofonia em Berlim
14 de outubro de 2013O fado, quem diria, ganhou mundo. Essa forma de música tão tópica, aparentemente só compreensível à emoção e ao espírito lusitano, contando histórias, falando de lugares e tratando de personagens obsessivamente lisboetas, numa língua "exótica": ao longo de pouco mais de uma década, o fado – embora longe de estar em todas as bocas – conquistou surpreendentes milhares de ouvidos mundo afora.
Essa súbita ascensão tem uma figura de proa bem definida: a filha de um português e uma moçambicana, nascida na África, crescida em Lisboa – Mariza. Como parte de uma grande turnê internacional, ela se apresentou no fim de semana (12-13/10), na Haus der Kulturen der Welt ("Casa das Culturas do Mundo"), em Berlim.
O gosto da fruta
Esse "descobrimento" do fado pelo mundo coloca até hoje musicólogos e jornalistas diante do desafio de tentar traduzir em palavras um fenômeno sonoro provindo de uma cultura praticamente alienígena. Difícil tarefa: é como tentar descrever o gosto de uma fruta que o interlocutor nunca provou.
"Blues português" é uma comparação frequente, o tango e o flamenco também são por vezes evocados. Há quem fale da "tradição de canções emotivas, plenas de tragédia e desejo". Ou: "O fado é sobre melancolia, desejo e perda, a ânsia crua pelo que está ausente (um homem); e sobre transformar a dor disso em prazer sublime".
O jornalista da BBC Nick Reynolds arrisca uma imagem elaborada: "Essa música é elegante, sofisticada e cheia de anseio. Há algo nas guitarras e nas cadências da voz que evoca o mistério e a tristeza do oceano. Alguém espera num café do porto por um amante que jamais retornará..."
Enquanto "o mundo" tenta descrever o fado, Mariza também desafia definições. Richard Scheinin, do jornal San Jose Mercury News faz uma tentativa: "Alta como uma jogadora de basquete... impossivelmente dramática... parece saída de um quadro de Modigliani... Ela tem presença. E essa voz... Ela é uma diva. É uma estilista". E se atropela nas analogias, evocando, em poucos parágrafos, Kate Moss, Greta Garbo, Mick Jagger, Miles Davis, Liza Minnelli, Barbra Streisand.
"Ah, então é esse o gosto da fruta?", perguntaria o leitor desavisado. "Engraçado, mais parece marshmallow..."
E a esfinge segue sorrindo. A sereia, cantando.
De Lisboa para a América e de volta
Uma das possíveis histórias do fado conta uma gênese bastarda, em ziguezague: seus criadores seriam os que, emigrados para o Brasil, retornavam desiludidos à terra natal. Não só contaminados pelas músicas afro-brasileiras, como carregando uma melancolia ibérica potencializada pela dupla travessia atlântica, o exílio ao quadrado. Por isso, esse fado tão indizivelmente sofrido e pesado.
Mas quem já assistiu a um show de Mariza sabe melhor: o fado é bem mais do que melancolia terminal. Ele é uma expressão viva da lusofonia – o "triângulo entre Portugal, Brasil e África", na definição da cantora – em seus mais variados estados de espírito.
Ela afirma isso e prova – com a voz e o corpo. Nessa noite na "Casa das Culturas do Mundo" à beira do rio Spree, acompanhada por quatro músicos, virtuoses como ela: os onipresentes José Manuel Neto (guitarra portuguesa, a mais aguda, "em forma de lágrima"), Pedro Joia ("viola de fado" – próxima do violão brasileiro) e o angolano Nando "Yami" Araújo (viola baixo); complementados pelo baterista Vicky Marques – presença apenas intermitente, mas brilhante.
Patrimônio imaterial da humanidade
Em 2011 Mariza ajudou oficialmente a preparar para a Unesco o dossiê que rendeu a esse gênero musical tão local o status de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Missão cumprida para a Embaixadora do Fado? De forma alguma: o mandato continua no palco.
De fato: já há alguns anos, cada apresentação sua no exterior vai além da bela música, torna-se uma fascinante aula de lusitanismo. O público de Berlim ficou sabendo sobre as sete colinas de Lisboa com seus sete bairros, sobre as "varinas" da Madragoa, sobre saudade – claro.
Mariza explicou algo que grande parte dos próprios portugueses ignora: o que é o "fado tradicional": "É um repertório fixo, de umas 300 canções, compostas 100, 110 anos atrás, que todo fadista tem que saber." E, como cada um tem um registro vocal diferente, prosseguiu a cantora, "os pobres dos guitarristas" têm que saber tocar todas de cor, nas 12 tonalidades existentes.
Foi também com humor que, em poucos minutos, ela ensinou aos berlinenses como cantar fluentemente o refrão de Rosa branca, de José de Jesus Guimarães e Resende Dias: "Colha a rosa branca, ponha a rosa ao peito". Uma façanha respeitável – com forte apoio da numerosa plateia lusófona, admita-se.
A rainha está morta: viva a rainha!
No entanto, antes de redefinir a música lisboeta em seus próprios termos, Mariza teve que arcar com uma herança quase esmagadora. O início de sua trajetória estelar coincidiu exatamente com a morte da "Rainha do Fado", Amália Rodrigues (1920-1999). Para os fãs da música lusitana, ela era o mesmo que Maria Callas para os amantes da ópera: mito, absoluta, insubstituível.
No entanto, apesar de contar com esse ícone, desde a Revolução dos Cravos de 1974, a fama do fado entre os portugueses menos tradicionalistas era negativa. Antes instrumentalizado pela ditadura, ele se tornara símbolo de um Portugal reacionário, tacanho, fatalista, a ser superado. Jovens portugueses presentes ao concerto em Berlim confirmaram: até escutar Mariza, a geração deles não encontrava no fado nada com que pudesse se identificar.
Coincidência ou fado-destino, a voz de Marisa dos Reis Nunes rompeu as fronteiras dos bairros de Lisboa justamente quando, em 1999, ela foi convidada para participar de uma homenagem radiofônica a Amália. Dois anos mais tarde lançava seu primeiro álbum, Fado em mim, vendendo 140 mil exemplares – no universo fadista, 4 mil já representavam um grande sucesso.
E de festival em festival, de turnê em turnê, em pouco tempo Mariza – seu timbre incomparável, a técnica vocal perfeita, a interpretação tão controlada quanto eloquente, sua presença, seu controle do palco – era uma nova grandeza no firmamento da assim chamada world music. E com ela, quem diria, o fado.
Menos é mais
Quem estuda a carreira de Mariza nota primeiro uma bem calculada expansão, tanto no alcance do repertório quanto no aparato musical. Explodindo no CD Transparente, de 2006, gravado num estúdio no Rio de Janeiro e com arranjos orquestrais do maestro Jaques Morelenbaum.
Também no Concerto em Lisboa, diante da Torre de Belém, o músico brasileiro encabeçava toda uma orquestra de cordas – o DVD foi indicado para o Grammy do ano seguinte. A partir daí, começou um processo de redução, que culmina em Fado tradicional, o quinto e mais recente álbum de Mariza: uma voz, três guitarras.
Por outro lado, como fica provado no show em Berlim, a conexão com o grande universo da lusofonia não se rompe mais. Ela se manifesta na frenética percussão africana do clássico Barco negro. Ou na homenagem a Elis Regina, – e aí o coração brasileiro bate forte – "uma de minhas cantoras preferidas", com o Canto de Ossanha, de 1966, composto por Baden Powell e Vinícius de Moraes.
Mas a direção-mestre da atual fase da "cantadeira", que completa 40 anos em 16 de dezembro, é clara: menos é mais. Para cúmulo do efeito, perto do fim do concerto ela engendra uma apoteose a cappella. Em meio a Boa noite, solidão, faz desligar toda a amplificação eletrônica e, como na ópera – mas também como na casa de fado lisboeta –, enche o auditório de mais de mil lugares só com a própria garganta.
Antes, Mariza confessara ao público berlinense: no dia seguinte o grupo iria para Viena, e depois faria um longo giro pelos Estados Unidos – ela já tem saudades de casa, que só volta a ver em meados de dezembro. Solidão, porém, ela não sente:
"Porque tenho vocês. Obrigada por estarem recebendo minha música, minha cultura, tentando entender." E não há como deixar de acreditar na sinceridade dessa mulher, encantadora de multidões, embaixadora, diva, esfinge, sereia e – queira ou não – nova Rainha, do fado e da música do mundo.