Sempre achei o 7 de Setembro uma data estranha. Pois marca uma independência que, em 1822, ninguém percebeu, e, portanto, não gerou imediatamente um mito fundador. Não houve uma grande guerra pela separação da colônia, como aconteceu nos Estados Unidos. Lá ocorreu uma guerra sangrenta que durou anos, e uma declaração de independência forte e marcante, no dia 4 de julho de 1776. Existe um verdadeiro mito fundador com cunho tão forte e libertador que até hoje influencia o pensamento e as ações políticas dos representantes do povo americano.
Outra nação que lutou pela independência foi o Haiti, que se libertou do cruel regime dos franceses numa guerra sangrenta. Ser capaz de derrotar as tropas de Napoleão até hoje é visto como um atestado da força quase supernatural dos haitianos naquele momento. A América espanhola também tem seus mitos fundadores e seus heróis das guerras pela independência da Espanha, como Simon Bolívar e José de San Martin. Eles inspiram, até hoje, o imaginário coletivo das novas nações criadas. Vale também lembrar o cubano José Martí.
Tudo isso não há no Brasil. Aquele grito de "Independência ou morte" ninguém ouviu. O Iluminismo não passou pelas terras brasilienses, propagando valores como fraternidade e liberdade e trazendo a vontade de criar algo novo e independente. Simplesmente, uma monarquia – a casa Bragança-Habsburgo – se declarou como império independente. As cores do Brasil – o verde e amarelo, que milhares de brasileiros vão levar para as ruas nesta quarta-feira (07/09) – vêm dessas duas casas monárquicas.
A Independência foi um mero momento burocrático. Fora dos palácios, nada mudou. Foi o próprio Dom Pedro, que criou a memória de um Dia da Independência, que, na verdade, ninguém viu.
Portanto, o que há de comemorar? Como a própria Independência, as comemorações do 7 de Setembro sempre me pareceram bem burocráticas. Ninguém sabia bem o que comemorar. Até o presidente Jair Messias Bolsonaro descobrir o potencial eleitoral da data.
No ano passado, botou uns tanques de guerra na Praça dos Três Poderes, fingindo alguma iminência. Depois, na Avenida Paulista, soltou bravatas sobre sua suposta própria independência frente aos juízes do STF. Fez aí seu próprio grito de "Independência ou morte", uma simulação assim como o grito de 1822.
E o bicentenário? O que os atos convocados pelo presidente para o 7 de Setembro deste ano vão trazer? Em clima de campanha, haverá muitos gritos de guerra, mas não contra os portugueses. Haverá mais polarização política com cunho eleitoral.
Um grupo bolsonarista em Porto Alegre convocou para a festa do bicentenário com um cartaz enorme, em que deixa claro quem é o inimigo: os comunistas, que supostamente defendem o aborto, a soltura de bandidos, o PCC e o narcotráfico em geral, que querem o povo desarmado e a ideologia de gênero nas escolas, que são a favor da censura e de um MST forte, e que querem mais impostos. Eis o espírito, fingindo outra iminência.
É um Brasil ainda preso na Guerra Fria, nos obscuros anos 60 e 70. Por aqui, além de não ter passado o Iluminismo, ainda não aconteceu uma Revolução dos Cravos, como em Portugal em 1974. Aqui, ninguém colocou flores nos canos dos fuzis. Aqui, as pessoas estão se armando.
Enquanto isso, Portugal se tornou um tipo de refúgio para brasileiros desesperados com a atual situação no Brasil. Li, umas semanas atrás, que hoje um número recorde de brasileiros vive em Portugal. Oficialmente são mais de 200 mil, mas estima-se que haja muitos vivendo por lá de forma não oficial, somando uns 300 mil no total. É um país que pode servir de modelo para o Brasil, 200 anos depois de partir os dois caminhos. Basta parar de gritar e abrir os olhos.
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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
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