Bélgica à beira de um "tsunami" na pandemia
21 de outubro de 2020As cadeiras na calçada do Cadre Noir provavelmente não serão mais usadas, prevê o proprietário Arias, enquanto as coloca num caminhão. O bar de esquina, gerido por sua família no bairro de Schaarbek, em Bruxelas, é um ponto de encontro para os artesãos romenos que vivem nos arredores. Agora, eles terão que tomar em casa a tradicional cerveja após o fim do expediente.
"Acabou, né? Vocês têm que fechar?", pergunta um senhor de mais idade, cliente regular do local, com um cachorro. "O governo determinou assim a princípio, por quatro semanas. Mas quem vai saber...", diz o proprietário. "Eles fazem qualquer coisa sem saber exatamente para que serve", opina Arias, que não quer ser chamado pelo nome completo.
Ele acusa os políticos de estarem em pânico. No verão, lembra, os donos de restaurantes ainda tiveram que fazer investimentos, instalando divisórias por todos os lugares e montando gazebos do lado de fora para oferecer proteção aos fregueses contra o coronavírus e a chuva.
Apesar de reconhecer que haverá uma compensação financeira por parte das autoridades por essa inatividade, o proprietário do Cadre Noir acha que ela vem tarde e que mal será suficiente para o aluguel. Se eles vão sobreviver a este segundo lockdown e reabrir ainda este ano? "A esperança é a última que morre", diz.
Em uma esquina mais à frente, um bar de vinhos já perdeu as esperanças antes mesmo do final de semana: "Desculpe, fechado", diz o aviso de forma sucinta.
E a tradicional brasserie em frente, onde costumam se encontrar os cidadãos mais abastados e os trabalhadores do bairro vizinho, já não pode mais atrair seus clientes com os "mexilhões frescos da estação".
Mais adiante, em Marolles, na região central da cidade, um antigo pub que normalmente serve cerveja e cozinha tradicional se transformou numa espécie de brechó da noite para o dia. O barman continua limpando as torneiras dos barris de chope, mas sem muito ânimo: "Agora não vamos precisar delas por um bom tempo, talvez nunca mais."
"Cabe a todos manter a situação sob controle"
Duramente atingida pela pandemia, a Bélgica quebra novos recordes a cada dia. No período de 9 a 15 de outubro, uma média de quase 7,9 mil novas infecções foram registradas diariamente. No início desta semana, quase 2,5 mil pacientes de covid-19 se encontravam em hospitais – mais de 400 deles em unidades de terapia intensiva.
"Nós estamos realmente à beira de um tsunami", diz o ministro belga da Saúde, Frank Vandenbroucke, que aponta Valônia e Bruxelas como as regiões mais afetadas em toda a Europa. "No momento, ainda conseguimos manter um controle sobre o que está acontecendo, mas somente com extrema dificuldade."
Ele afirma ainda que as autoridades estão prestes a perder o controle por completo, com os profissionais de saúde trabalhando sob enorme estresse novamente. Se os números continuarem a aumentar, alerta, outros tratamentos médicos terão de ser interrompidos – o que também seria perigoso.
Vandenbroucke tem apenas uma mensagem para os belgas: "Protejam-se e protejam o próximo!"
Além da usual exigência de máscara em lojas e nos meios de transporte, há ainda um pedido para que ninguém se encontre com mais de uma pessoa fora do círculo familiar mais restrito.
"Ninguém é culpado por este vírus", disse o ministro em resposta a acusações de que os jovens, em particular, estariam contribuindo para o alto número de infecções devido à falta de cautela. "Cabe a todos nós manter essa situação sob controle."
Na medida do possível, trabalhar em casa deve se tornar a norma novamente, conforme decretou o governo, mas lojas, museus, escolas e universidades permanecem abertas.
Vandenbroucke rejeita a ideia de um toque de recolher total a partir das 21h, como o que vigora na França desde o último fim de semana: "Não queremos paralisar a vida por completo. Há dois inimigos: o vírus e a solidão, a depressão." Na Bélgica, as pessoas podem ao menos fazer um passeio pela noite, diz o ministro.
Confusão entre regiões
Apesar de tais anúncios, o fato é que os governos regionais e municipais da Bélgica estão em desacordo sobre os detalhes dos regulamentos. A cidade de Charleroi, por exemplo, impôs uma exigência total de máscara, mas isso já não se aplica na cidade vizinha.
É por isso que o governo central decidiu nomear um "comissário do coronavírus", que deve padronizar as regras regionais contraditórias e estabelecer um contato entre os vários níveis de governo e administração.
"Agora é pior do que em 18 de março, quando anunciamos o lockdown total", disse o primeiro-ministro belga, Alexander de Croo. Segundo ele, a situação nos hospitais é tensa, com um número de casos que requerem tratamento intensivo três vezes maior do que o observado naquela época. "Vai piorar ainda mais", teme o chefe do governo, cujas estatísticas preveem cerca de 2 mil leitos de UTI ocupados na Bélgica em meados de novembro.
Hospitais na iminência do colapso
Uma mostra de quão grave ameaça ser a situação nos hospitais pôde ser vista na última segunda-feira (19/10), quando funcionários do Hospital Erasme, em Bruxelas, fizeram uma breve paralisação. Cerca de 60 médicos e profissionais de enfermagem se queixaram de não terem recebido nenhum equipamento adicional e, sobretudo, nenhum reforço na equipe desde a primeira onda de covid-19 no início do ano.
"Estamos caindo como moscas", disse um dos organizadores à emissora RTL. "Temos que continuar trabalhando, mesmo se testarmos positivo e tivermos febre", afirmou a enfermeira Layla, que também se recusou a revelar seu sobrenome. Assim, aponta ela, os profissionais da saúde podem acabar infectando pacientes e familiares.
Os funcionários do Erasmus estão indignados porque as promessas do início do ano não foram cumpridas: "Naquela época, todos nos aplaudiam no final do dia", lembra Layla, apontando que, mesmo assim, não houve um aumento nas equipes.
O médico-chefe do hospital, Jean-Michel Hougardy, se mostrou solidário com os grevistas: "Precisamos urgentemente de mais pessoal – para os leitos de covid-19, mas também para o restante das atividades hospitalares."
Os primeiros anúncios de lotação completa já foram dados por hospitais em Bruxelas e Liège. Se taxa de infecção não cair, hospitais belgas estarão lotados em duas semanas.
Muitos no sistema de saúde belga se sentem abandonados pela política. Mas não é apenas neste ponto que cidadãos veem falhas na implementação de algumas das lições amargas do primeiro lockdown.