1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW
MúsicaAlemanha

Artista brasileira em turnê pela Alemanha denuncia racismo

24 de julho de 2023

Cantora Bia Ferreira relata ter ouvido de funcionária em hotel em Nurembergue que "se não gosta de gente branca, vai embora daqui, volta para o teu país". Estabelecimento diz lamentar caso e se distancia das acusações.

https://p.dw.com/p/4UKF7
A cantora e compositora brasileira Bia Ferreira, em foto da cintura para cima, canta em um palco com a mão esquerda sobre o peito e de olhos fechados. Ela é uma mulher negra e usa dreads cor de algodão rosa. Está trajando um sobretudo rosa choque. Por trás dela há uma luz amarela.
A cantora e compositora brasileira Bia Ferreira.Foto: Júlio Leão

Atualmente em turnê no exterior, onde se encontra para uma temporada de 45 shows, a cantora e multi-instrumentista brasileira Bia Ferreira, 30, denunciou em suas redes sociais ter sido vítima de racismo no último domingo (23/07) durante passagem por Nurembergue, cidade alemã no estado da Baviera.

Recebida com carinho pelo público na noite anterior durante apresentação no festival Bardentreffen, Bia relatou à DW Brasil como o que deveria ter sido um café da manhã banal acabou virando uma tremenda dor de cabeça para ela e sua equipe.

A cantora relata ter chegado um minuto atrasada ao serviço do restaurante do hotel, o Holiday Inn Nürnberg. Ao se deparar com as portas fechadas do salão, insistiu com a funcionária para que a deixasse buscar ao menos um café.

Uma vez lá dentro, e ao ver que parte do buffet ainda estava aberto e outros hóspedes estavam no ambiente, Bia fez menção de pegar um pãozinho, ao que foi repreendida pela funcionária: "Você disse que ia só pegar um cafezinho".

A cantora diz ter ignorado o comentário, feito seu prato e ido se juntar aos dois colegas da banda e à produtora – todos negros –, que haviam chegado mais cedo e estavam terminando a refeição.

Alguns minutos mais tarde, uma segunda funcionária teria se aproximado do grupo e avisado que precisariam sair dali a 10 minutos, pois o ambiente seria limpo. Bia diz ter agradecido pela informação e aproveitado a oportunidade para se queixar da hostilidade da primeira funcionária.

"Nisso a primeira mulher voltou e falou que precisávamos ir embora porque o restaurante ia fechar", afirma Bia. "A outra funcionária nos havia dado 10 minutos", contra-argumentou. "Aí ela falou: 'Não. Eu sou a gerente aqui, eu estou mandando. Você vai levantar, vai sair agora. Se quiser levar suas coisas para terminar de comer no quarto, tudo bem, mas aqui você não pode ficar.'"

"Eu falei: 'Então vai avisar as outras mesas que você está fechando, que até você terminar de fazer isso eu já terminei de comer'", relata. A funcionária teria retrucado que não tinha tempo para ir em todas as mesas. "Então vem só na nossa? Olha que curioso", teria reagido Bia. 

'Qual é o seu problema com gente branca?', teria dito funcionária

"Qual é o seu problema com gente branca? Se você não gosta de gente branca, vai embora daqui, volta para o teu país, porque a Alemanha é um país de gente branca", teria retrucado a mulher. "Não tenho nenhum problema. Não estou entendendo o que está acontecendo", teria afirmado Bia em resposta. "Isso que você está dizendo é racista."

Ainda segundo a cantora, a funcionária teria reagido ao último comentário com extrema indignação, convocando todos os funcionários da cozinha – todos estrangeiros – para desaboná-la.

"E aí começaram a cercar a nossa mesa e dizer: 'Ela só pediu para vocês levantarem'. E eu falando: 'Gente! É que acabaram de falar que tínhamos 10 minutos. Eu só quero terminar de comer rapidinho'", afirma Bia, que relata ter se sentido coagida. "A gente ficou ali até levantar e falar: 'A gente tá indo embora, você só não precisa agir dessa forma. A gente só queria comer. Tínhamos 10 minutos e você foi racista.' Aí ela começou a querer expulsar a gente do hotel."

Os hóspedes que presenciaram o ocorrido, segundo Bia, eram brancos e minimizaram o ocorrido. Outros que ainda tomavam café da manhã estariam em um segundo salão e não teriam acompanhado tudo. As câmeras do ambiente registram apenas as imagens, mas não o som.

"Racismo aqui não tem lugar", diz hotel

Procurado pela DW, o hotel Holiday Inn Nürnberg, um dos patrocinadores do festival Bardentreffen, diz que lamenta o episódio e distanciou-se das acusações. A funcionária acusada no caso faria parte da equipe há anos e até então nunca teria sido registrada qualquer queixa contra ela.

"Racismo, aqui, não tem lugar. Nosso hotel depende da diversidade", diz o comunicado, citando a origem plural e multiétnica da equipe de funcionários. "Nunca quisemos ferir a artista e estimada hóspede. Queríamos proporcionar a ela uma estadia agradável em Nurembergue."

Ainda segundo o hotel, Bia chegou depois do horário de encerramento do café da manhã, às 11h, e foi avisada de que teria que deixar o local às 11h30, assim como todos os demais hóspedes. Perto desse horário o grupo teria sido abordado em tom cordial, assim como outros hóspedes, e sido informado de que poderia continuar a comer em outras áreas do hotel, como o lobby.

Nessa altura, afirmou por telefone Julia Rübsamen, que gerencia o hotel, haveria apenas quatro hóspedes no salão, dois já prestes a ir embora. "A funcionária, eu posso garantir, é via de regra cordial. Se ela de alguma forma exagerou no tom, não tenho como dizer, porque não estava presente. Mas ela definitivamente não é racista."

O grupo também não teria sido proibido de adentrar o hotel posteriormente – Bia afirma que sim, e diz que a informação lhe foi passada pela polícia, que por sua vez teria apontado a funcionária do restaurante como responsável pelo veto.

"Somos parceiros do Bardentreffen há alguns anos, e patrocinadores desde o ano passado", afirma o comunicado. "O festival é enriquecido por várias culturas e é para nós uma alegria e honra especial poder apoiá-lo também com nosso trabalho."

O hotel diz estar empenhado em contatar Bia para encontrar uma solução pacífica para o conflito.

"Se alguém errou no tom, pedimos sinceras desculpas", afirmou Rübsamen. "Faremos de tudo para evitar que casos como esse se repitam no futuro."

Racismo reverso

Abalada, Bia diz ter chamado a polícia para denunciar o caso, mas teria ouvido dos agentes da polícia bávara que racismo na Alemanha não é crime – de fato, a discriminação é vetada pela Constituição Federal, mas a punição pela Lei Antidiscriminação (Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz, ou AGG), em caso de decisão judicial ratificando que houve racismo nesse episódio, só se aplicaria no âmbito civil, abrangendo, por exemplo, uma indenização.

A lei prevê penas mais duras para discursos explícitos que incitem a violência contra grupos com base em nacionalidade, raça, religião ou etnia – isso, sim, tipificado como crime no ordenamento jurídico alemão. Esse entendimento tem sido aplicado a entidades neonazistas organizadas quando há potencial de dano à ordem pública.

Bia afirma que registrou o caso como ofensa por orientação da polícia – a funcionária também, alegando ter sido insultada por uma falsa acusação de racismo.

"Parece que o problema não é ela ser racista, mas eu ter denunciado que sofri racismo", queixa-se. "Ela ficou o tempo todo falando que eu era racista reversa e eu dizendo: 'O racismo reverso não existe!' Parecia que eu tinha entrado num outro planeta."

Na noite daquele mesmo dia, no domingo, a cantora subiu ao palco novamente, desta vez em Würzburg, também na Baviera. Diz ter chorado ao entoar uma de suas composições, "Diga não", em que levanta a voz contra o que chama de "genocídio do povo preto", e compartilhado o episódio com a plateia.

"A gente foi coagido, humilhado, trancado dentro do café da manhã com uma roda de funcionários em volta da gente acusando a gente de racista reverso porque a gente só queria comer", desabafa.

Cantora relata racismo no dia a dia na Alemanha

Ainda segundo a cantora, o episódio no hotel foi o mais sério de todos desde que pôs os pés no exterior ao longo de sua carreira, mas ela diz ter sido exposta a diversas situações desagradáveis fora do país, também na Alemanha, onde tem se apresentado todos os anos desde 2019.

"É estranho quando a gente entra nos lugares e as pessoas param de falar para ver a gente andar e sentar à mesa. A forma que as pessoas olham, o choque das pessoas olhando para a gente", ressente-se. "Todo dia tem alguma micro agressão que a gente sofre." 

Um dia antes da discussão no hotel, ela lidou com expressões de asco e aversão de uma senhora idosa com quem os músicos dividiram uma lavanderia. Outra vez, no aeroporto de Frankfurt, foi abordada em tom jocoso por uma funcionária da segurança: "Me perguntou se eu era da Jamaica e me fez balançar meus dreads na frente dela para ver se não caía droga."

Tirando o entrevero em Nurembergue, ela diz que a turnê tem sido um sucesso, e que tem sido muito bem recebida pelo público. Além de passagens por França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha, Holanda, Áustria e Suíça, Bia também tem shows agendados em Estados Unidos e Canadá até o final de setembro.

Às vezes confundida como dançarina no exterior ao apresentar-se como artista, ela festeja o reconhecimento pelo seu trabalho, cujo tom é altamente politizado.

Procurada pelo Holiday Inn Nürnberg, Bia disse que só tratará com o hotel a partir de agora através de advogados.

"A Europa tenta negar a existência do racismo não falando sobre ele, para fingir que não existe. E a gente vem num movimento contrário, que é explicar que existe sim e incentivar as pessoas que sofrem a dizer", afirma Bia. "Eu não culpo quem se cala, mas eu acho que a gente precisa falar porque está num lugar que as pessoas ouvem. Eu não posso ignorar, porque eu acho que isso também incentiva outras pessoas a não se calarem diante de situações como essa. Racismo são essas agressões diretas e indiretas que a gente sofre todo dia e que você sabe que é pela cor da sua pele, sabe que é pelo lugar de onde você vem."

Quão racista é a Alemanha?