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"Brasil atingiu maior isolamento desde a redemocratização"

30 de setembro de 2022

Em entrevista à DW, cientista político Oliver Stuenkel atribui ao governo Bolsonaro isolamento sem precedentes do Brasil na política externa e diz que, sob Lula, o país pode voltar a ser um mediador internacional.

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Jair Bolsonaro caminha dentro do Palácio da Alvorada
"Bolsonaristas diziam: 'Estamos fazendo algo certo, se as democracias liberais rompem conosco.'"Foto: Eraldo Peres/AP/dp

Após quatro anos de governo Jair Bolsonaro, o Brasil se encontra mais isolado no cenário internacional do que em qualquer outro momento desde a redemocratização. A opinião é do cientista político Oliver Stuenkel, professor adjunto de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo.

"Fora a Sérvia, Polônia e Hungria, hoje o Brasil não conseguiria nenhum encontro bilateral na Europa", avalia o especialista teuto-brasileiro, em entrevista à DW.

Se as pesquisas de intenção de voto se confirmarem e as urnas derem a vitória ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, essa constelação "mudaria dentro de 24 horas", afirma Stuenkel. Sob Lula, "nos campos do meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo e democracia, o Brasil voltaria imediatamente a contar como parceiro".

Para além do isolamento internacional, o cientista político lista outros pontos do legado tóxico de Bolsonaro frente ao Planalto. Segundo Stuenkel, o atual presidente estabeleceu uma cultura armamentista e debilitou severamente o Estado brasileiro,  sobretudo na proteção ambiental, educação e saúde, através de cortes de verba em massa.

"Numerosos funcionários qualificados abandonaram os órgãos públicos. Levou décadas para, por exemplo, montar a polícia ambiental Ibama, que combatia com grande eficácia o desmatamento da Amazônia. Bolsonaro praticamente a desmantelou, vai levar anos para voltar a compô-la", afirma.

DW: No próximo domingo (02/10) o presidente brasileiro de extrema direita Jair Bolsonaro disputa a reeleição. Há muitos indicadores de que ele perderá contra seu adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Qual será o legado de Bolsonaro?

Oliver Stuenkel: Primeiro: hoje existe uma extrema direita no Brasil que não vai desaparecer. Em segundo lugar, facilitando a aquisição de armas, ele estabeleceu uma cultura armamentista. Muitos brasileiros, sobretudo de direita, hoje estão armados. Terceiro: Bolsonaro debilitou severamente o Estado brasileiro. Sobretudo na proteção ambiental, educação e saúde, através de cortes de verba em massa.

Numerosos funcionários qualificados abandonaram os órgãos públicos. Levou décadas para, por exemplo, montar a polícia ambiental Ibama, que combatia com grande eficácia o desmatamento da Amazônia. Bolsonaro praticamente a desmantelou, vai levar anos para voltar a compô-la.

Como pesquisador, o senhor vivenciou pessoalmente essa demolição?

Sim, pois também as verbas para pesquisa sofreram cortes sérios. Sob Bolsonaro, para muitos não era mais possível praticar ciência de modo decente. Os pesquisadores que dependiam de subsídios e bolsas ficaram de mãos atadas. Muitos foram para o exterior, em especial o pessoal de ponta.

Como realizar experimentos em laboratório se não há mais dinheiro para comprar material? Houve uma evasão de cérebros. Além disso, o governo atacava os cientistas críticos. Alguns deles eram figuras de destaque e podiam se defender, mas muitos daqueles mais abaixo ficavam calados, pois tinham medo.

O bolsonarismo é um perigo para a democracia?

No fim das contas, Bolsonaro é um caudilho de cunho latino-americano, um populista com ambições autoritárias. Costumo compará-lo ao falecido presidente da Venezuela Hugo Chávez – naturalmente sob outro signo ideológico. Ambos tentaram concentrar o poder no Executivo e militarizar o governo, atacaram a mídia e as universidades.

Eles tentaram politizar a burocracia e isolaram seus países no nível internacional. E ambos se comunicavam através de seus próprios canais com o povo, a fim de contornar a imprensa. Neles, Bolsonaro agora conta a seus adeptos que vai vencer a eleição no primeiro turno. Eles acreditam e dizem que as sondagens são falsificadas. Cerca de um quarto dos eleitores de Bolsonaro é contra ele aceitar uma derrota.

Parece o que Donald Trump fez nos Estados Unidos...

Nós ainda não chegamos onde os EUA estão hoje: lá, uma grande parte dos republicanos afirma que Biden não venceu a eleição. Mas também no Brasil há uma radicalização que não está claro aonde levará. Minha maior preocupação é que depois da votação ocorra violência e caos. E no longo prazo pode ser um problema se 20 ou 30 milhões de cidadãos dizem: "Lula não é meu presidente, não preciso mais pagar impostos." Aí, estariam abertas portas e janelas para todo tipo de maluquice.

Há temor de que Bolsonaro convoque os militares, se perder.

Os militares não vão dar um golpe de Estado. Os generais não são doidos e não vão colocar os tanques nas ruas. Mas se o resultado das urnas for apertado e houver tumultos, Bolsonaro pode ordenar que as Forças Armadas restabeleçam a ordem. Ou acontece um ataque de hackers ao Tribunal Superior Eleitoral, e Bolsonaro diz que o pleito foi manipulado. Aí os militares podem dizer que houve irregularidades e que a eleição precisa ser repetida.

Como explicar a ascensão de Jair Bolsonaro, por que tantos ainda votam nele?

Nos últimos dez anos o Brasil teve praticamente 0% de crescimento. Foi uma década perdida, o país está em estado catastrófico. O pessoal da minha geração, por exemplo, não pôde poupar nada, quase ninguém financiou sua casa. A frustração impera. E no entanto, de 2002 a 2013 houve uma grande euforia, milhões compraram motos, geladeiras e enviaram seus filhos para a universidade. Então veio a estagnação, e na pandemia houve enormes retrocessos. Aos olhos de muitos brasileiros, o sistema não funciona, por isso eles são vulneráveis a ideias radicais. Um extremista como Bolsonaro não surge numa sociedade estável.

Em segundo lugar, muitas vezes se esquece que diversas reformas progressistas no Brasil vieram dos tribunais, e não da política. Muitos progressos no setor dos direitos humanos foram reinterpretações pela Justiça – como, por exemplo, o casamento gay. Agora os críticos de direita dizem que isso não é democrático.

Os bolsonaristas são gente com medo de mudanças progressistas, por exemplo através do feminismo. Eles praticamente partilham a visão de sociedade de Vladimir Putin e outros líderes conservadores. Um terceiro ponto importante para a permanência de Bolsonaro é que seus eleitores não têm mais acesso à mídia tradicional: eles vivem num mundo de informação separado, tudo o que veem e escutam é radicalmente à direita.

Que ligações há entre os movimentos de neodireita em todo o mundo – o bolsonarismo, o trumpismo, o neofascismo na Itália ou Marine Le Pen na França?

Há a Conservative Political Action Conference (Cpac) nos EUA, onde essa gente se encontra, e onde o filho do presidente Eduardo Bolsonaro confabula com Steve Bannon, ex-assessor de Donald Trump. Quanto às técnicas – ou seja, à forma como as campanhas se realizam –, há muito intercâmbio e se encontra inspiração. Com frequência vejo nos grupos do Telegram aqui coisas que pouco antes apareceram no programa do [apresentador do canal Fox News] Tucker Carlson.

No entanto esse intercâmbio não é formalizado, e os contextos nacionais são totalmente outros. O Reagrupamento Nacional da França [partido ultradireitista de Le Pen] ou o neofascismo da Itália, por exemplo, não querem uma militarização da política, como Bolsonaro. Além disso há um obstáculo: esses movimentos são ultranacionalistas, por isso a cooperação internacional é um problema para eles. [Viktor] Orbán, Bolsonaro e Le Pen não têm muito a oferecer uns aos outros, fora não se criticar mutuamente.

Bolsonaro isolou o Brasil na política externa. O país vai voltar a ganhar peso internacional sob um presidente Lula?

O Brasil está mais isolado na política externa hoje do que em qualquer época desde a redemocratização, em 1988. Bolsonaro celebrou esse encapsulamento, a gente dele dizia: "Estamos fazendo algo certo, se as democracias liberais rompem conosco." Fora a Sérvia, Polônia e Hungria, hoje o Brasil não conseguiria nenhum encontro bilateral na Europa.

Sob Lula, isso mudaria dentro de 24 horas: nos campos do meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo e democracia, o Brasil voltará imediatamente a contar como parceiro. Menos claro é se sob Lula haveria uma aprovação rápida do acordo de livre-comércio com a União Europeia. O PT de Lula não é pró-globalização, ele tem uma tendência protecionista. Para Lula, a industrialização nacional é mais importante do que o livre-comércio, ele não quer ser só exportador de matérias primas e importador de bens industriais.

Onde o Brasil não será parceiro da UE de modo algum, é na questão da Rússia e da China. Não há coincidência de interesses. Lula é pela realpolitik, ele diz: "Nossas relações com Moscou e Pequim são exatamente tão importantes como com Washington e Bruxelas." Lula é partidário de um mundo multipolar, não quer ser parte de um bloco. Por isso é provável que sob seu governo o Brasil volte a ser um interlocutor ou até um mediador solicitado internacionalmente.

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O cientista político Oliver Della Costa Stuenkel é um colunista e comentarista solicitado em âmbito nacional e internacional. Professor adjunto de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, o teuto-brasileiro de 40 anos é autor dos livros The Brics and the future of global order (O Brics e o futuro da ordem global) e Post-Western World: How emerging powers are remaking global order (Mundo pós-moderno: Como potências emergentes estão refazendo a ordem global).