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Brasil abre caminho para "dinheiro 4.0"

26 de outubro de 2020

PIX e open banking prometem revolucionar pagamentos. Iniciativas vão ter impacto na receita de grandes bancos, mas terão que superar acesso desigual à internet no país e milhões de brasileiros não bancarizados.

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Gebäude der Banco Central do Brasil
Foto: picture-alliance/dpa

Em novembro, o Brasil começa uma fase mais concreta do seu processo de modernização do sistema financeiro: entra em cena o PIX, o novo sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central (BC). Por meio de um QR code, será possível fazer pagamentos e transferências 24 horas por dia, todos os dias da semana, e sem custo para pessoas físicas.

A digitalização do dinheiro – usa-se cada vez menos papel-moeda – e fazer com que valores troquem de mãos de forma mais eficiente são parte de uma agenda global, e que no Brasil foi encampada pelo Banco Central ainda na gestão anterior da autarquia.

A chamada "Agenda BC#" junta-se a outras pontas como o open banking – que também começa a ser implementado em novembro –, num esforço de modernizar o sistema financeiro do país, com as promessas de reduzir a concentração do mercado bancário, trazer mais eficiência e segurança, e eventualmente reduzindo o custo Brasil.

"Um navio com minério de ferro paga uma guia de recolhimento da União numa sexta-feira e precisa esperar no porto de Santos até segunda-feira para que o pagamento compense. Com o pagamento instantâneo, isso acaba", exemplifica o diretor executivo da Associação Brasileira de Bancos (ABBC), Cláudio Guimarães Júnior.

Mas os desafios não são pequenos: uma em cada quatro pessoas no país não tem sequer acesso à internet segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e mais de 30 milhões não são bancarizados - condição necessária para ter acesso, por exemplo, ao novo sistema de pagamentos. E até 2018, dado mais recente do BC, o papel-moeda era ainda a forma de pagamento mais utilizada pelos brasileiros, segundo pesquisa na qual 60% afirmaram usar mais o dinheiro vivo.

A DW Brasil conversou com economistas e representantes do setor financeiro para entender as perspectivas desse percurso no Brasil, onde o país se situa globalmente na corrida pelo "dinheiro 4.0" e quem é impactado pelas mudanças.

Nem na liderança, nem na lanterna

O sistema que se implanta agora no Brasil já é uma realidade na China há alguns anos, onde tudo se paga com o celular, por meio de QR Code. O país asiático caminha agora para os pagamentos por reconhecimento facial. Mas, para os especialistas ouvidos pela reportagem, o Brasil não fica muito atrás quando se trata de sistema financeiro.

"Somos muito pouco atrasados. Em muitas técnicas, como compensação bancária, somos mais avançados que alemães e franceses. A contradição é que serviços bancários frequentemente foram comprados no exterior", afirma o professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (Ebape-FGV) Istvan Kasznar.

Um estudo realizado pela consultoria Bain & Company revelou que as funcionalidades previstas para o PIX colocam o Brasil em situação análoga à de países como Suécia, Austrália e Índia em termos dos benefícios para os usuários em transações entre pessoas físicas, e em posição intermediária, relativamente próxima à Suécia, no que tange a transações entre pessoas físicas e jurídicas.

"Os países em que isso (pagamento via QR code) aconteceu com maior aceitação, como Indonésia e China, foi onde não existia um sistema bancário forte, e Visa e Mastercard, os plásticos, não tinham presença forte. Então eles pularam etapa. Por que QR Code não deu certo nos Estados Unidos, na Inglaterra? Porque já tinham um sistema robusto", diz o analista da XP Investimentos Marcel Campos. "A dúvida era se isso ia dar certo no Brasil”.

Para "dar certo", é preciso não só que o sistema funcione operacionalmente, mas que também ocorra uma adesão da população. No país, até quinta-feira (22/10), o número de chaves cadastradas no PIX bateu os 48,5 milhões - o registro não é condição necessária, no entanto, para a utilização do sistema. Embora uma pessoa possa registrar até cinco senhas, o número parece considerável para pouco mais de 15 dias de cadastro, e surpreendeu alguns economistas e representantes do mercado.

O professor da FGV considera que o número é "formidável" do ponto de vista da reação da população em relação às campanhas feitas pelos bancos e pelo próprio Banco Central. No entanto, levando-se em conta que o país tem 175 milhões de contas correntes, o dado não parece tão representativo. "Se você imagina que boa parte da população está desconfiada, ainda não sabe bem que instrumento é esse, suspeita que isso vai significar controle por parte do BC, esse número parece baixo", diz.

Aí entraria um dos obstáculos da agenda digital: a educação financeira, no sentido de a população entender que opções tem disponíveis, e de compreender como usar os instrumentos. Entre outros desafios apontados, estaria ainda "a desobstrução das travas geradas pelos grandes bancos”, segundo Kasznar.

Quem ganha e quem perde

Se uma pessoa não precisará mais pagar cerca de dez reais para fazer uma transferência bancária, alguém deixará de ganhar. Em um país como o Brasil, no qual os cinco maiores bancos concentram 81% do mercado, e lucram alto com tarifas, essa iniciativa acabou encampada pelo estado, diferentemente de países como a China, onde foi a iniciativa privada que deu as cartas.

Os grandes bancos serão impactados negativamente tanto pelo PIX quanto pelo open banking. Com o PIX, perdem receita considerável que vem de serviços como TEDs e DOCs, embora o custo também se reduza - de um real por operação para poucos centavos.

Segundo levantamento da XP Investimentos, os bancos no Brasil têm entre 400 a 600 milhões de reais de receita anual em TEDs e DOCs. "Mas o principal não é isso: a principal razão para você pagar uma tarifa de conta corrente hoje é a cesta de serviços. Eles dão ‘x' TEDs e DOCs por mês de graça. Se for tudo de graça, por que pagar para ter uma conta?".

No caso do Bradesco, por exemplo, dos 101 bilhões em receitas em 2019, 33,6 bilhões de reais foram só de serviços. Desses, 7,7 bilhões de reais tiveram origem em tarifas de conta corrente. Na estimativa da Bain & Company, até 2024 os bancos devem perder 1 bilhão de reais em margem operacional com as transações entre pessoas físicas do PIX.

Embora seja necessário estar atrelado a uma conta corrente para ter acesso ao PIX, o que poderia beneficiar os grandes bancos, não é necessário que ela seja paga, evidentemente. Com os novos "entrantes" nos mercados, as fintechs, que oferecem contas correntes a custo zero, os grandes bancos também perdem. Tanto que, das chaves cadastradas no novo sistema, o Nubank, que oferece contas gratuitas, concentra quase o mesmo número que quatro grandes bancos somados.

Além do PIX, o open banking mexe com esse mercado altamente concentrado. Por meio do dele, os dados de pessoas físicas e jurídicas passaram a ser acessíveis para todas as instituições financeiras.

O banco em que você sempre teve sua conta corrente, por exemplo, sabe quanto você já movimentou durante anos, se manteve emprego estável ou não, se é bom pagador ou não. Com informações como essas, fica mais fácil e mais barato conceder crédito, porque o risco de a instituição dar um crédito que não volta é menor. Com o open banking, elimina-se essa assimetria de informação, que era barreira de entrada para muitas instituições menores no mercado de crédito. Em teoria. Na prática, pode ser mais complicado.

O open banking começou há poucos anos na Inglaterra e se espalhou para outros países. "A ideia é boa, mas o que a experiência internacional está mostrando é que isso não conseguiu se reverter em mercado mais eficiente", avalia o investidor e ex-sócio do BTG Pactual Gustavo Roxo.

Conforme Roxo, uma das hipóteses para não ter sido um sucesso retumbante, além das economias já viverem um ambiente de juros baixíssimos, é o fato de que as empresas menores têm uma barreira de entrada mais significativa: a falta de capital. "É preciso que elas achem uma forma de se financiar, e isso é muito mais complexo".

No percurso da digitalização, há ainda as criptomoedas, que por enquanto ainda servem mais a especulação. Mas vários países e instituições planejam lançar suas versões. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, afirmou recentemente que o Brasil deve ter sua própria criptomoeda em 2022.