"Bolsonaro fez com a PRF o que não conseguiu com a PF"
1 de novembro de 2022As operações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizadas no último domingo (30/10), dia do segundo turno da eleição, para fiscalizar veículos de passeio e ônibus especialmente na região Nordeste – onde o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva teve seu maior percentual de votos – levantou suspeitas sobre uma tentativa coordenada de interferência indevida no processo eleitoral e colocou essa força de segurança no centro do debate político brasileiro.
O ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já havia determinado que essas operações não fossem realizadas no dia do pleito, mas a ordem foi desobedecida.
No domingo, a coligação de Lula chegou a pedir que o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, fosse preso se não interrompesse as blitzes de trânsito. Moraes então reforçou sua determinação e foi atendido no início da tarde.
O próprio Vasques havia pedido voto para o presidente Jair Bolsonaro em seu perfil no Instagram, reforçando as acusações de que a força de segurança teria sido aparelhada pelo presidente e estava sendo utilizada para seus fins políticos. Nesta segunda-feira, a PRF voltou ao noticiário diante da falta de ação contra caminhoneiros bolsonaristas que bloquearam diversas rodovias pelo país, em protesto contra o resultado eleitoral e a vitória do petista.
O sociólogo Luis Flávio Sapori, professor da PUC Minas e coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública (Cepesp), afirma em entrevista à DW que Bolsonaro, ao longo de seu governo, aproveitou-se do fato de que a PRF é uma força de segurança relativamente nova, sem tanta autonomia e coesão interna como a Polícia Federal (PF), para instrumentalizá-la.
Em relação aos bloqueios das rodovias, Sapori considera ser de praxe a busca da PRF por uma ordem judicial que justifique o desbloqueio, mas projeta dificuldades para a normalização do tráfego enquanto Bolsonaro não der um sinal claro para os caminhoneiros que o apoiam agirem nesse sentido – e avalia ser possível que, mesmo com uma liminar judicial, a força de segurança não a execute com afinco.
Sapori considera que uma prioridade do novo governo Lula deveria ser revogar a ampliação das competências da PRF estabelecida pela gestão Bolsonaro, e nomear um novo diretor-geral técnico e preocupado em garantir a autonomia da força de segurança.
DW: Qual é a atribuição da Polícia Rodoviária Federal?
Luis Flávio Sapori: Segundo a Constituição, o patrulhamento ostensivo e preventivo das rodovias federais para evitar a ocorrência de acidentes de trânsito, de crimes relacionados ao trânsito e de atividades criminosas que se utilizam das rodovias federais, como tráfico de drogas. Mas ela não tem atribuição de investigação criminal – caso identifique um crime, deve registrar e repassar para a Polícia Federal.
Essa atribuição se expandiu durante o governo Bolsonaro?
Sim, houve nítida expansão de atribuições, e não por mudança legislativa. Uma portaria do ministro da Justiça estabeleceu que a Polícia Rodoviária Federal pode desempenhar atividades de repressão ao crime organizado, ao tráfico de drogas, para além das rodovias federais.
Baseada nela, o atual comando da Polícia Rodoviária Federal formou um grupamento de policiais especializado em ações táticas de repressão ao tráfico de drogas, que age apenas em operações específicas, e não preventivamente nas rodovias federais. Atua em cidades e em regiões de periferia atravessadas por rodovias federais para reprimir o tráfico de drogas ou quadrilhas que atuam no roubo de bancos no interior do país.
Que dinâmica motiva a expansão dessas atribuições?
Isso está relacionado à mudança do perfil no comando da instituição, com um diretor-geral muito alinhado política e ideologicamente ao presidente da República. Esse alinhamento significou uma instrumentalização da instituição, a serviço da perspectiva do governo Bolsonaro, que tem incentivado uma postura mais de enfrentamento armado ao tráfico de drogas.
Houve uma aproximação do presidente da República com a Polícia Rodoviária Federal, em um momento em que ele teve um certo confronto com a Polícia Federal em função de aumentos não concedidos aos delegados da PF. O presidente acaba se apoiando mais na Polícia Rodoviária Federal, que tem merecido um tratamento diferenciado.
Como uma instituição de estado cedeu a essa influência política do presidente?
Esse fenômeno ficou mais claro no domingo de eleição, quando ela realizou indevidamente, contrariando decisão do Tribunal Superior Eleitoral, operações de fiscalização de transporte público em todo o interior do Brasil, principalmente em cidades do Norte e Nordeste, com claro viés de dificultar o acesso de eleitores aos pontos de votação. Provocou um grande constrangimento político e institucional, a ponto de o ministro presidente do TSE, Alexandre de Moraes, determinar a suspensão dessas operações, que estavam direcionadas para favorecer a candidatura do presidente da República.
Isso está muito relacionado ao fato de ser uma polícia relativamente nova no Brasil, que surgiu há 40 anos, pouco antes da Constituição de 1988, e que não tem ainda uma identidade institucional delineada. Então é mais vulnerável, não tem ainda uma solidez interna a ponto de conseguir evitar esse manuseio político por parte do presidente. Algo que é um pouco diferente da Polícia Federal, que é mais sólida e autônoma, e de alguma forma mais resistente a essas vieses políticos e ideológicos.
Temos que rediscutir com mais precisão até onde a Polícia Rodoviária Federal pode ir. Cabe ao [novo] governo Lula, recém-eleito, anular aquela portaria e definir com mais precisão as atribuições dessa organização.
O diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, chegou a pedir voto a Bolsonaro no seu Instagram e depois deletou o post. Como o sr. avalia esse gesto?
Como indevido, indefensável e ilegal. Pelos próprios regulamentos internos das polícias brasileiras, os comandantes e os altos cargos de chefia não podem se manifestar politicamente, principalmente durante o período eleitoral. Ele violou o regulamento interno, tanto que retirou o post horas depois, e ficaria vulnerável a uma ação correcional interna se fosse uma instituição mais séria e autônoma.
Ele está ali para reforçar a perspectiva de Bolsonaro de colocar as forças de segurança a serviço dos seus interesses pessoais. Bolsonaro tentou fazer isso na Polícia Federal. Não conseguiu, mas está conseguindo, infelizmente, na Polícia Rodoviária Federal.
Moraes já havia proibido operações do tipo no dia da eleição, mas foram feitas mesmo assim, e a coligação de Lula chegou a pedir a prisão do diretor-geral da PRF se ele descumprisse a ordem. Depois, o presidente do TSE deu uma entrevista coletiva e jogou água na fervura, dizendo que as operações não haviam impedido os eleitores de votar. O sr. vê espaço para uma eventual responsabilização futura do diretor-geral da PRF?
Do ponto de vista jurídico, é justificável uma ação administrativa correcional, considerando que, do meu ponto de vista, ele violou parâmetros legais da legislação eleitoral brasileira e desobedeceu uma decisão do presidente do TSE. Mas entendo que o ministro Alexandre de Moraes agiu politicamente, e acho que ele foi correto.
Apesar de ter parâmetros legais para punir o diretor-geral, Moraes preferiu diminuir o impacto do fenômeno para não criar uma justificativa para a militância bolsonarista deslegitimar as eleições. Ele deu uma ordem para cancelar as operações e foi atendido, mesmo que tardiamente, e fez um cálculo racional de custo-benefício para o pleito eleitoral.
Nesta segunda-feira ocorreram bloqueios de estradas por caminhoneiros, o que levantou questionamentos se a PRF, que estava tão ativa no domingo, não deveria agir para desbloquear as rodovias. A PRF solicitou à Advocacia-Geral da União que pedisse uma liminar judicial para desbloquear as rodovias. É necessário uma ordem judicial para isso?
Precisa, sim, de um amparo legal, considerando que é um movimento social que, questionável ou não, tem uma pauta política. É fundamental que tenha amparo de uma decisão judicial para fazer a desobstrução das rodovias federais. Mas tudo leva a crer que não o fará mesmo que esse amparo legal exista. O presidente da República até o momento não se manifestou sobre o resultado da eleição, e acredito que essas manifestações estão relacionadas a esse silêncio.
Como o novo governo Lula deve lidar com a PRF?
É fundamental que ele nomeie um novo diretor-geral com mais compromisso com a democracia e com a instituição. Espero que adote um critério técnico e uma diretriz para fomentar a construção de uma identidade de uma polícia de estado, com um programa de formação e treinamento. Aproveitar esse episódio não para fazer uma caça às bruxas, mas nomear uma novo comando e redefinir sua missão e até onde ela pode ir.