Big Brother em tempos de RDA
29 de março de 2006Até agora, filmes de sucesso sobre a antiga Alemanha comunista pareciam tratar o assunto com "não-me-toques" e lentes cor-de-rosa.
Sonnenallee, lançado em 1999, é uma comédia que enfoca os absurdos do cotidiano na República Democrática Alemã (RDA). Enquanto o filme mostra a presença permanente do Estado policial, funcionários e a polícia são retratados como tolos ou palhaços, antes maçantes do que qualquer outra coisa.
O hit internacional Adeus, Lênin!, de 2003, também lança um olhar cálido e embaçado sobre os tempos de antes e depois da queda do Muro de Berlim. Embora sem elogiar o sistema da RDA, o filme dá uma ou duas estocadas no vento frio do "capitalismo Burger King" que soprou sobre o país, com a abertura da Cortina de Ferro.
Das Leben der Anderen (A vida dos outros), o primeiro filme do diretor Florian Henckel von Donnersmarck, 32 anos, dispensa o tratamento nostálgico para explorar a forma como a polícia política na Alemanha comunista – a Stasi – invadia a vida de muitos cidadãos, destruindo-a.
"O filme lança um olhar mais crítico sobre a época do que os anteriores", diz Mike Swain, coordenador do site de cinema kino.de. "Ele faz uma análise muito precisa do Estado policial. Em outro nível, ele questiona se é possível manter a própria humanidade num sistema totalitário."
Espiões no sótão
A história se desenrola a partir da figura de Gerd Wiesler (interpretado por Ulrich Mühe), um oficial da Stasi que recebe a tarefa de espionar o bem-sucedido dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch). Motivo da investigação: um ministro da Alemanha Oriental se interessa pela namorada do escritor, a atriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), e deseja desacreditar o astro da cena teatral.
Wiesler e funcionários da Stasi investigam cada cômodo do apartamento de Dreyman e instalam uma escuta no sótão. Wiesler e outro funcionário revezam-se num sistema de escalas, acompanhando cada uma das conversas e cada um dos momentos íntimos do artista, transcrevendo detalhadamente as coisas que observam, mesmo as mais banais.
Wiesler começa o filme como um oficial engajado, que até dá aulas aos recrutas da polícia secreta sobre métodos de interrogatório. À medida que penetra na vida dos artistas, sua visão de mundo começa a se esfacelar. A aridez de sua própria existência se torna aparente em contraste com a riqueza do mundo do dramaturgo bon vivant e sua taletosa namorada.
Perfil de um jovem diretor
Henckel von Donnersmarck nasceu em Colônia e cresceu em Nova York e em Berlim Ocidental. Estudou em Oxford e na Escola Superior de Cinema de Munique. Durante um ano, o diretor dedicou-se a estudar a vida no Leste alemão. Também passou um tempo nas locações do filme, incluindo a prisão da Stasi em Hohenschönhausen e o quartel-general da polícia secreta – ambos atualmente transformados em museus.
"Os lugares são capazes de armazenar emoções", disse Henckel em entrevista. "Essas visitas me ensinaram muito mais do que os livros que li todos esses anos ou os documentários a que assisti."
Para o filme, Henckel entrevistou várias testemunhas da época da RDA, incluindo prostitutas que trabalhavam para o serviço secreto, antigos prisioneiros, artistas ativistas e até um oficial da Stasi que liderava uma das divisões de espionagem.
Encontrar as locações foi um processo importante e complicado, pois o diretor tinha uma idéia exata da imagem que queria transmitir do país. A palheta de cores utilizadas no filme foi reduzida para obter uma imagem autêntica do país nos anos 1980. Eliminando os tons azuis e vermelhos e abusando do marrom, do bege, do verde e do cinza, pintou-se uma paisagem monótona de um país privado de vitalidade e tingido de um medo oculto.
Críticas elogiosas
O filme foi recebido com elogios quase unânimes da crítica e já ganhou quatro prêmios na Baviera. Semana passada, Das Leben der Anderen recebeu nomeações para o Prêmio Alemão do Cinema em 11 categorias, incluindo a de melhor filme.
Embora pessoas que tiveram experiências pessoais com a Stasi reclamem que a transformação atravessada pelo oficial no filme compromete a credibilidade da obra, a maioria das opiniões tem sido positiva.
Joachim Gauck – ex-líder da comissão responsável pelos arquivos deixados pela Stasi após a queda do Muro – descreve o filme como "uma jornada a um mundo perdido", que deixa toda sensação de nostalgia para trás. "É uma contribuição importante para a forma como lidamos com essa época", afirma.
Confronto penoso
Para outros, entretanto, o filme é um retrato exato demais de uma época que preferem esquecer. Fontes da distribuidora norte-americana Buena Vista afirmam que a bilheteria do filme não está indo bem no Leste da Alemanha, ao contrário do que se esperava.
"Ainda há uma divisão no país", diz a fonte. "A Buena Vista queria que o filme fosse exibido no maior número de lugares possível, por toda a Alemanha, mas não está funcionando no Leste. Talvez para algumas pessoas lá ainda seja cedo demais para se tratar do assunto."
Jens Planner-Friedrich trabalha no Bürgerbüro, grupo que ajuda vítimas do regime da ex-Alemanha Oriental, e diz não se surpreender com o fato de que esse olhar sobre o "realismo realmente existente" não agrade a todos.
"Existem ainda pessoas que não querem se confrontar com essa parte de seu passado", afirma. "Muitos preferem recordar somente os bons aspectos. É simplesmente humano."