Beethoven e o salto criativo para fora da crise
14 de janeiro de 2013Desde os anos 70, a psicóloga e pedagoga Erika Schuchardt estuda as formas como os seres humanos superam suas crises pessoais. Para isso, ela acompanhou centenas de pessoas e leu mais de 2 mil narrativas biográficas do mundo inteiro. No processo, esbarrou com o compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827).
Surdez e incompreensão
Aos 28 anos de idade, Beethoven passou a apresentar deficiência auditiva. Três anos mais tarde descreveria sintomas como dificuldade de perceber as frequências mais agudas e de compreensão de fala, assim como ruídos torturantes no ouvido, distorções e hipersensibilidade aos sons.
À medida que o processo de ensurdecimento progredia, Beethoven viu-se isolado, desprezado e ridicularizado por seus semelhantes. "Ele se sente marginalizado e não sabe para onde direcionar sua agressão. Ele não pode dizer nada e ainda jovem, em 1802, redige um testamento denunciando a sociedade que o considera hostil, doente e intratável", conta Schuchardt.
No assim chamado Testamento de Heiligenstadt, o músico escreve: "Eu daria fim à minha vida, se não fosse a arte. Enquanto vós, Deus, me derdes a música, eu tenho que viver. [...] Deus, dai-me forças para vencer a mim mesmo".
Questões existenciais
Schuchardt desenvolveu um modelo detalhado em espiral, com as fases da evolução de uma crise. No início, todas as pessoas atingidas se perguntam: "O que está de fato acontecendo?". É a fase da incerteza. Em cartas a seus dois irmãos e a amigos, Beethoven menciona uma grande insegurança, lembra a psicóloga.
Na segunda fase da espiral, a da certeza, vem a negação da surdez como doença. A constatação é tão dolorosa que ele oculta a deficiência de si e dos outros. Em seguida vem o "estágio intermediário não controlado emocionalmente". Durante longos anos, o compositor e pianista conteve suas emoções.
A terceira fase da espiral – "Por que eu?" – explode de dentro dele com agressividade. Ele se volta contra os amigos e os proíbe terminantemente de escutá-lo enquanto estuda piano, por desconfiar deles. Em seguida tenta "negociar" com a crise, livrar-se do sofrimento com a ajuda de médicos e de peregrinações. Por fim, vem a quinta fase, a da depressão, sintetizada na pergunta: "Para quê? Tudo é sem sentido!".
Da aceitação à solidariedade
Na sexta fase, Beethoven alcança o que a psicóloga denomina "estágio-alvo da aceitação", e reconhece o próprio caminho. Num jogo de palavras envolvendo os dois sentidos da palavra alemã Kreuz – cruz e sustenido –, o músico escreve: "As cruzes na vida não são como os sustenidos na música, que elevam?".
Beethoven chega à sétima fase da espiral e passa à ação, consolando os companheiros de infortúnio. Na Nona sinfonia, ele musica a Ode à Alegria, de Friedrich Schiller. Rompendo com as regras então vigentes, inclui solistas vocais e coro numa obra do gênero sinfônico.
Por fim ele se reconcilia, na oitava fase, a da solidariedade, com a sociedade e com Deus: "Senti-vos abraçados, milhões, este beijo é para todo o mundo", canta o coro, primeiro em uníssono, depois em exuberante contraponto, perto do fim do quarto e último movimento da Nona sinfonia.
Também Schlingensief e Steve Jobs
O pianista Constantin Barzantny utiliza a monumental Sonata para piano em si bemol maior, opus 106, apelidada Hammerklavier, para ilustrar as oito fases da espiral de vida do compositor descrita por Schuchardt. Para o músico, trata-se do "mais longo monólogo da literatura pianística". E a psicóloga acrescenta:
"Nos 12 últimos compassos, Beethoven atravessa todas as oito fases. O que mais me impressionou foi o fato de a última fase, a da solidariedade, se transformar num salto criativo para fora da crise. Isso vale para todas as pessoas: você só precisa ousar, você vai conseguir e vai – como diz Beethoven em sua prece – conseguir a força para vencer a si mesmo."
Schuchardt evoca também o diretor teatral alemão Christoph Schlingensief e o empresário norte-americano Steve Jobs. Ambos igualmente atravessaram os oito passos da espiral da crise.
O ateu Schlingensief escreveria, ao alcançar a fase da solidariedade: "Deus, amigão, encarregado para assuntos de dor, faz bem o teu trabalho. Vou voltar à capela do hospital e falar contigo". E consta que o silencioso, discreto, retraído Jobs teria dito, no fim da vida, ter dificuldade em aceitar que não houvesse nada depois da morte. "Por isso era tão difícil para mim instalar nos aparelhos da Apple o botão de desligar."
O grande gestor de crises
Schuchardt apresentou sua, então inédita, abordagem da recepção da obra beethoveniana em 2008. Agora está sendo lançado em terceira edição Diesen Kuss der ganzen Welt: Beethovens schöpferischer Sprung aus der Krise (Este beijo para todo o mundo: O salto criativo de Beethoven para fora da crise). Indagada pela Deutsche Welle a quem se dirige seu livro, ela explica:
"Acho que todas as pessoas podem se encontrar nesse livro. O tão desejado calor humano foi negado a Beethoven pela sociedade da época. A partir dessa solidão, ele desenvolveu uma infinita sensibilidade para a linguagem e a vida. Beethoven era o advogado dos privados de direitos. Mas ele via a própria vida como um serviço a Deus e aos seres humanos vitimizados e é, deste modo, 'o' gestor de crises de todos os tempos."
Autoria: Conny Paul / Augusto Valente
Revisão: Alexandre Schossler