Autoridades negligenciam papel de indígenas em buscas no AM
16 de junho de 2022Autoridades brasileiras trataram com negligência e invisibilizaram o papel de voluntários indígenas nas buscas pelo jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira.
A coletiva de imprensa em Manaus liderada pela Polícia Federal na quarta-feira (15/06), que detalhou as conclusões das investigações, foi marcada pela exclusão completa de representantes dos povos indígenas do Vale do Javari, a região onde Phillips e Pereira foram assassinados. A mesa acabou sendo dominada por representantes uniformizados de forças de segurança do Estado brasileiro.
Na quarta-feira, mais de cem voluntários indígenas de cinco etnias diferentes do Vale do Javari estavam participando das buscas, que se estenderam por dez dias. Indígenas guiaram membros de forças de segurança na mata e também foram responsáveis por localizar objetos das vítimas, ajudando a delimitar com mais precisão a área das buscas pela dupla.
Durante a coletiva de quarta-feira, o superintendente da Polícia Federal do Amazonas (PF-AM), Alexandre Fontes, listou em seus agradecimentos uma série de organizações oficiais do Estado brasileiro – Ministério Público do Amazonas, Corpo de Bombeiros e Forças Armadas, entre outras – por seu papel nas buscas e na elucidação do crime. Fontes, no entanto, não mencionou os indígenas.
O delegado somente abordou o papel dos indígenas após ser questionado sobre a ausência da menção por uma jornalista estrangeira, já na fase de perguntas da coletiva de imprensa.
Ao ser cobrado, Fontes, ladeado por representantes uniformizados da Marinha, Exército e Polícia Militar, finalmente afirmou que foi "um equívoco" não mencionar o "trabalho realizado em parceria com ribeirinhos e indígenas". Antes de corrigir o "equívoco", Fontes havia passado o microfone para os representantes uniformizados, que por sua vez trocaram elogios sobre o papel das suas agências e órgãos oficiais, sem também mencionar os indígenas.
No entanto, Fontes ainda evitou mencionar o papel da União das Organizações Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que deu início às buscas pela dupla ainda no mesmo dia em que Phillips e Pereira foram vistos com vida pela última vez, em 5 de junho.
No dia 11 de junho, voluntários indígenas foram responsáveis por encontrar pertences da dupla numa lona em uma área de igapó, numa região de difícil de acesso. Segundo a Univaja, a descoberta foi comunicada às autoridades, que isolaram o local no dia seguinte. Imagens divulgadas pelo canal de TV britânico Channel 4 mostram o momento em que os objetos foram localizados.
Indígenas também foram responsáveis por encontrar o barco de Amarildo da Costa Oliveira, o "Pelado", que confessou ter assassinado o jornalista e o indigenista. Além disso, eles ajudaram a guiar membros das forças de segurança nas matas.
Nesta quinta-feira (16/06), a postura das autoridades de ignorar as ações dos indígenas prosseguiu. Uma nota de pesar divulgada nesta manhã pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirma: "[o ministério] enaltece o trabalho realizado pela Polícia Federal e pelas Forças Armadas, que rapidamente elucidaram o caso" — sem mencionar o papel dos povos do Vale do Javari.
Nos primeiros dias após o desaparecimento da dupla, o governo brasileiro foi alvo de críticas e acusado de lançar uma reposta lenta e de inicialmente se empenhar pouco nas buscas. A Justiça Federal chegou a ser acionada para ordenar que o governo disponibilizasse mais recursos
Para a Univaja, apenas a PM local tratou indígenas como "verdadeiros parceiros na busca"
Em nota divulgada na noite de quarta-feira, a Univaja, organização que representa as etnias Marubo, Matis, Matsés, Kanamari, Korubo, Tsohom-dyapa e povos isolados do Vale do Javari, detalhou seu papel nas buscas.
"Nós, Univaja, participamos ativamente das buscas desde o dia 05/06/22 através da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU). Fomos os primeiros a percorrer o rio Itaquaí atrás de Pereira e Phillips ainda no domingo, primeiro dia do desaparecimento dos dois. Desde então, a única instância que esteve ao nosso lado como parceira nas buscas foram os policiais militares do 8º Batalhão em Tabatinga (AM)."
"Fomos nós, indígenas, através da EVU, que encontramos a área que, posteriormente, passou a ser alvo das investigações por parte de outras instâncias, como a Polícia Federal, o Exército, a Marinha, o Corpo de Bombeiros etc. Foi a equipe de vigilância da Univaja que entrou na floresta em busca de Pereira e Phillips para dar uma satisfação aos seus familiares. Foi a equipe de vigilância da Univaja, a EVU, que indicou para as autoridades o perímetro a ser vasculhado em profundidade pelos órgãos estatais", continua a nota.
"Para isso, nós contamos com a colaboração e proteção constante dos policiais militares do 8º Batalhão em Tabatinga (AM): os únicos a nos tratarem como verdadeiros parceiros na busca, valorizando o nosso conhecimento e a nossa sabedoria enquanto povos indígenas, conhecedores do nosso território".
Ainda na nota, a Univaja agradeceu o comandante da PM local e a imprensa nacional e internacional. "Viemos à público prestar agradecimentos ao Coronel Cavalcante, aos policiais militares do 8º Batalhão em Tabatinga (AM) que nos acompanharam nas buscas, e também à imprensa nacional e internacional que foi nossa parceira, nos ajudando a levar para o mundo inteiro ouvir a nossa voz e conhecer o que está acontecendo em nossa região."
Ainda na quarta-feira, o assessor jurídico da Univaja, Eliésio Marubo, criticou durante uma live transmitida no Instagram o que chamou de "soberba" da Polícia Federal. "A PF foi soberba, assumiram para si como se tivessem fazendo todo o trabalho e não foi", disse.
Ainda na nota, a Univaja classificou o assassinato de Pereira e Phillips como "crime político" e alertou que os dois suspeitos presos pelos assassinatos, Amarildo e seu irmão, "fazem parte de um grupo maior". "O que acontecerá conosco? Continuaremos vivendo sob ameaças?", finaliza a nota da Univaja.
Antes de ter sido ignorada na coletiva, a Univaja havia sido alvo em 10 de junho de uma nota agressiva por parte da Fundação Nacional do índio (Funai), órgão federal do Estado brasileiro responsável por promover políticas de proteção aos povos indígenas, mas que, sob o governo Bolsonaro, passou por um processo de desmonte e aparelhamento por militares, ativistas evangélicos e militantes de extrema direita.
Na nota, a Funai acusou a Univaja de divulgar informações "inverídicas" e acusou Pereira e Phillips – naquele momento ainda desaparecidos – de não possuírem autorização para entrar em terras indígenas no Vale do Javari. A Univaja rebateu a Funai e disse que Phillips não entrou nas terras indígenas da região e que Pereira tinha documentação em ordem. A região específica em que os dois desapareceram não é parte da terra indígena. A Funai ainda ameaçou acionar o Ministério Público Federal contra a Univaja.
Após um pedido da Defensoria Pública da União, que acusou a Funai de usar um "tom intimidatório", a Justiça Federal do Amazonas mandou a fundação retirar a nota do seu site.
Até outubro de 2019, Pereira foi o responsável pela Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai, quando foi exonerado por pressão política, já no governo Bolsonaro e quando a Funai estava sob a jurisdição do então ministro da Justiça Sergio Moro. Em seu lugar, foi indicado um delegado da Polícia Federal, apoiado pela bancada ruralista.
Viúva de Phillips diz que inicia "jornada em busca por justiça"
A viúva do jornalista britânico Dom Phillips, que foi assassinado na Amazônia com o indigenista Bruno Pereira, declarou na noite de quarta-feira, em nota, que agora "se inicia" uma "jornada em busca por justiça".
A nota foi divulgada após a PF confirmar que foram encontrados restos mortais na área em que a dupla desapareceu e que um suspeito confessou ter assassinado Phillips e Pereira.
"Embora ainda estejamos aguardando as confirmações definitivas, este desfecho trágico põe um fim à angústia de não saber o paradeiro de Dom e Bruno. Agora podemos levá-los para casa e nos despedir com amor", declarou Sampaio, que vivia com Phillips em Salvador.
Jornalista veterano e colaborador do The Guardian, Phillips, de 57 anos, vivia no Brasil há 15 anos. Ao longo da sua carreira, ele também escreveu para vários outros veículos internacionais, incluindo Financial Times, New York Times e Washington Post, além de ter produzido reportagens para o serviço em inglês da Deutsche Welle (DW).
"Hoje, se inicia também nossa jornada em busca por justiça. Espero que as investigações esgotem todas as possibilidades e tragam respostas definitivas, com todos os desdobramentos pertinentes, o mais rapidamente possível", completou Sampaio.
A viúva também agradeceu aos indígenas e à Univaja, pelo papel nas buscas por Phillips e Pereira.
"Agradeço o empenho de todos que se envolveram diretamente nas buscas, especialmente os indígenas e a Univaja. Agradeço também a todos aqueles que se mobilizaram mundo afora para cobrar respostas rápidas. Só teremos paz quando as medidas necessárias forem tomadas para que tragédias como esta não se repitam jamais. Presto minha absoluta solidariedade com a Beatriz e toda a família do Bruno", finalizou Sampaio.