Entre a arte urbana e a propaganda
29 de abril de 2014O morador de metrópole passa por eles todos os dias, quando vai para o trabalho ou ao supermercado: outdoors promovendo o perfume mais sexy, o carro mais esportivo, o lançamento tecnológico mais recente. Gigantescos modelos femininos e masculinos, de pele perfeita e dentes brancos reluzentes, o encaram de cima para baixo, no transporte, nos restaurantes, nos toaletes públicos.
A propaganda de rua se tornou tão parte do cotidiano das grandes cidades, que sua presença muitas vezes até passa despercebida. A população de Berlim, sozinha, tem contato com esse tipo de publicidade pelo menos 18 bilhões de vezes por ano, segundo a empresa alemã Wall AG, uma das grandes do mercado de outdoors.
Mas há algum tempo um grupo de artistas da capital da Alemanha e de outras partes da Europa está – como eles dizem – "sequestrando" os cartazes, para enviar sua própria mensagem aos transeuntes.
De profissional a crítico da publicidade
"Por que o público é forçado a ver essa publicidade? Se você assiste televisão, as propagandas estão lá para que o programa seja pago – isso é uma coisa lógica. E sempre há a opção de mudar de canal. Mas nas ruas, você tem que ficar vendo", critica Vermibus, um dos artistas com base em Berlim, em conversa com a Deutsche Welle.
Ele decidiu, então, roubar cartazes de moda das caixas luminosas em esquinas de rua, pontos de ônibus, estações de trens, transformá-las em seu estúdio e devolvê-las a seu lugar de origem. Usando principalmente tinta, ele apaga as logomarcas das empresas e muda a aparência dos modelos, visando chamar a atenção para o que classifica como "falsa ideia de beleza".
Ironicamente, Vermibus atuava justamente no setor que ele agora tanto critica: antes de se mudar para Berlim, trabalhava como fotógrafo de moda em Madri – mas acabou rejeitando a superficialidade da indústria de moda e a mensagem projetada pelas marcas. "A foto é tirada de um modelo e depois alterada, até virar exatamente o que eles querem. Isso não é real. É absolutamente falso. Se você está procurando a perfeição, isso não é perfeição", ressalta.
Incomum, mas ilegal
Por vezes, Vermibus retira todo o outdoor, só deixando o espaço vazio. Embora consciente de que sua abordagem pode ser vista como "violenta", o artista acredita que o espaço branco é relaxante para o olhar do público.
"Acho que trabalho de maneira ética. Não estou destruindo as caixas luminosas com um porrete. Eu tenho uma chave, abro, troco o pôster e pronto. Não é anarquia. É uma mensagem alternativa, que diz que aquele é um espaço público", defende-se.
Mas nem tudo que parece relaxante está de acordo com a lei. Segundo Michael Wehran, porta-voz da Wall AG, a remoção de publicidade por artistas "é um problema menor e ocorre raramente. "No entanto, é um ato ilegal e pode acarretar medidas judiciais", alerta.
Mensagem artística
"Há algo nessas pinturas que me deixa desconfortável, incomodada, talvez", comenta a moradora de Berlim Karoline Schuch. "É o jeito como essas figuras macabras se misturam com as propagandas usuais, que estamos acostumadas a ver todos os dias."
A observação se refere aos trabalhos de Vermibus na mostra Positions, que também reúne obras dos igualmente críticos Ox e BR1 na galeria Open Walls, no complexo cultural berlinense Stattbad.
Naomi Mahendran, também visitante da exposição, tem uma perspectiva diferente. "Se eu visse um desses pôsteres na rua, não sei nem se me daria conta de que é arte. Ficaria pensando se alguma coisa não deu errado na impressão, ou o que, exatamente, essa publicidade está tentando vender."
Ainda que nem todos captem a mensagem, Vermibus considera Berlim uma cidade aberta a suas ideias. "Aqui há uma chance de mudar algo. Há muita publicidade, mas as pessoas também estão mais conscientes a respeito, estão mais receptivas à mensagem do que em outros lugares."
Exemplo de São Paulo
A organização ativista Amt für Werbefreiheit und Gutes Leben (Departamento pela Liberdade Publicitária e por uma Boa Vida) partilha sentimentos e ideias semelhantes. No ano passado, ela coletou milhares de assinaturas no movimentado bairro de Friedrichshain-Kreuzberg, numa campanha pelo banimento das propagandas de rua. O apoio permitiu que a questão fosse levada a debate na câmara local.
A proposta acabou sendo rejeitada, mas a campanha encontrou ressonância na comunidade, afirma o ativista Jan-Henning Korte. "Descobrimos que a frustração geral com a publicidade tem raízes profundas. Muita gente estava esperando uma campanha assim. O número de cartazes de propaganda explodiu desde os anos 1980, e é simplesmente demais", declarou à DW.
Apesar de a ideia de banir outdoors publicitários parecer radical, Korte aponta a chamada Lei Cidade Limpa, de São Paulo, como um exemplo de êxito. Em 2006, o município de quase 12 milhões de habitantes editou uma lei para regular a distribuição de material publicitário em áreas públicas. Entre outras mudanças, o novo regulamento passou a proibir anúncios publicitários em lotes urbanos como muros, coberturas e laterais de edifícios, além de publicidade em carros, ônibus, motos, bicicletas. Também foi estabelecida a padronização, simplificação e redução dos anúncios indicativos.
Em seu website, o governo municipal afirma que a lei permitirá que São Paulo diminua a poluição visual e promova uma melhor gestão dos espaços, além de promover o direito do cidadão de "viver numa cidade que respeita o espaço urbano, o patrimônio histórico e a integridade da arquitetura das edificações".
Entre a arte urbana e a propaganda
Guillaume Trotin, curador da exposição Positions, diz que queria fazer os visitantes refletirem sobre como interagem com a cidade, mas também questionar a maneira como a comunidade artística urbana tem trabalhado com as empresas. Segundo ele, numa cidade como Berlim, os artistas acabam basicamente transformando seus trabalhos em propaganda mural, ao requerer patrocínio empresarial.
"Assim que uma empresa como a Converse coloca um pouco de dinheiro na mesa, são feitas concessões demais", critica Trotin. "E aí não é mais arte, é merchandising ou propaganda. Pode ser que o artista se beneficie do ponto de vista financeiro, mas de quem é que as pessoas se lembram, da marca ou do artista? Sempre da marca, por ela ser mais estabelecida. Portanto, a relação não é de igual para igual."
Uma campanha publicitária recente da Converse levou um clash wall (muro para pinturas e grafites) ao bairro berlinense de Mitte. Qualquer um podia candidatar seu próprio esboço via Twitter, e artistas de rua conhecidos pintavam no muro o design vencedor.
No entanto, nem todos na comunidade da arte urbana são contra o patrocínio pelas marcas. Para Marco Schwalbe, diretor artístico da feira Stroke Art Fair de Munique, na verdade as marcas vêm ajudando os artistas de rua a viverem de seu trabalho, muito antes que eles pudessem expor nas galerias.
"Eu nunca criticaria um artista por usar seu status e popularidade para fazer algum dinheiro", enfatiza Schwalbe. "Certo, é fácil destruir a própria reputação, trabalhando com a marca errada. No entanto, muitas têm uma história forte de apoio à arte contemporânea. Acho que essa é uma visão muito limitada."
A mostra Positionsestá até 24 de maio de 2014 na galeria Open Walls, no complexo cultural Stattbad, em Berlim. A Stroke Art Fair se realiza em Munique de 30 de abril a 4 de maio.