Arte contemporânea à sombra de passado nazista
Desinformados em geral poderiam perguntar: o que têm quadros de Francis Picabia ou instalações de Pipilotti Rist a ver com trabalho forçado durante a Segunda Guerra Mundial? A novela é longa e, na noite desta terça-feira (21), chega a seu final. Feliz para uns. Chocante para outros.
Na vernissage que inaugura a exposição da coleção de arte Friedrich Christian Flick, no Rieck-Halle, um anexo do nobre Museu berlinense Hamburger Bahnhof, estará presente ninguém menos que o chanceler federal, Gerhard Schröder. Tudo não passaria de um cerimonial de praxe, não fossem as inúmeras controvérsias que acompanharam a decisão de expor ou não a "Flick Collection" na capital alemã.
Condenação por crimes contra a humanidade
O motivo: Friedrich Christian carrega em seu sobrenome (e em sua conta bancária) o peso das atitudes de seu avô durante a Segunda Guerra. O falecido Friedrich Flick, industrial do setor de armamentos, chegou a ser julgado em 1947 pelo Tribunal de Nurembergue por crimes contra a humanidade. E condenado a sete anos de prisão. Sobre seus ombros pesam acusações que vão da exploração do trabalho escravo em vários países da Europa a saqueamento de territórios ocupados e uma íntima ligação com a SS.
Pouco tempo depois de condenado em Nurembergue, Flick já estava solto e de volta a seus negócios. Em 1960, já era novamente um dos homens mais ricos da Alemanha. Império garantido, o industrial deixava para a família uma fortuna estimável.
Friedrich Christian, um dos netos, multiplicou ainda mais o patrimônio e se dedicou a um de seus hobbys: colecionar arte. O resultado é um acervo de mais de 2500 obras, de nomes que vão de Marcel Duchamp, Kurt Schwitters e Piet Mondrian a Gerhard Richter, Nam June Paik, Cindy Sherman e Pipilotti Rist.
Acervo banhado em sangue
E é exatamente essa invejável coleção que estará aberta ao público berlinense a partir desta quarta-feira (22). Porém, não impunemente. Pois sobre a fortuna que possibilitou tal coleção pairam alguns fantasmas. Entre eles, a escravização de milhões de pessoas e a participação ativa no regime nazista.
A questão discutida infindavelmente pela mídia é: deve o neto carregar a culpa pelos crimes do avô? Para Salomon Korn, vice-presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, o dinheiro que financiou a coleção Flick está "banhado no sangue" de milhões de trabalhadores escravos.
Recusa a pagar indenizações
Tudo não teria se transformado em tamanho escândalo sem a recusa insistente de Friedrich Christian em indenizar os trabalhadores forçados durante a Segunda Guerra. Sua própria irmã, Dagmar Ottmann, que contribuiu silenciosamente com somas consideráveis aos fundos destinados às indenizações, distanciou-se publicamente da postura do irmão.
Uma das iniciadoras de um projeto de pesquisa sobre a história de sua própria família, Ottmann afirma: "O objeto desses estudos não deve ser apenas o comportamento de Friedrich Flick antes e durante o período nazista, mas também no pós-guerra. Um período em que – sob a perspectiva atual – se mostra como a história de bloqueio da memória e recusa a indenizar as vítimas".
Com ou sem exemplares inéditos e apreciáveis de arte moderna e contemporânea, fato é que o nome Flick deixou suas marcas na história alemã. Queria ou não queria, o clã de industriais esteve e ainda está associado ao poder e à fortuna, a uma ascenção vertiginosa graças à conivência com o regime nazista e aos escândalos envolvendo a rejeição a indenizações nos anos 80. Um comportamento, diga-se de passagem, repetido tanto pelo neto Friedrich Christian quanto pelo avô Friedrich, que se negou até a morte a pagar qualquer quantia aos ex-trabalhadores escravos.
Desvendar o passado
Antes do "projeto Berlim", as primeiras tentativas de expor a valiosa coleção foram feitas na Suíça. Após uma série de veementes protestos, Zurique se recusou a expor "o legado de um antigo nazista". Quem diria que exatamente a capital alemã iria abrir seus braços para tal coleção.
Fato consumado, resta esperar que a exposição não contribua para colocar uma pedra no passado da família, mas, ao contrário, consiga trazer um pouco da história dos Flick à tona. Afinal, cutucar a memória coletiva não deixa de ser uma das funções primordiais da arte. Para isso, há de haver tempo suficiente. As obras da "Flick Collection" ficam em Berlim por pelo menos sete anos.