Americanos e armas de fogo, um caso único
28 de janeiro de 2019Em 2017, em uma viagem a Miami, Estados Unidos, o então deputado federal Jair Bolsonaro visitou uma academia de tiro. Após efetuar alguns disparos contra um alvo, ele disse: "Isso é Estados Unidos, é isso eu quero para o meu Brasil”. Na mesma viagem, ele também visitou uma loja de armas e comparou o Brasil desfavoravelmente aos EUA na questão do acesso e porte de armas. "É por isso que aqui é primeiro mundo".
No último dia 17 de janeiro, Bolsonaro assinou sua primeira medida oficial para flexibilizar a legislação sobre armas no Brasil: um decreto estabeleceu novas regras para a posse, que garante o direito de possuir uma arma em casa ou no local de trabalho.
Mas ele já deixou claro que também pretende facilitar o porte, ou seja, a possibilidade de circular armado, o que hoje é praticamente proibido, salvo para algumas profissões e casos excepcionais. "Vamos flexibilizar [o porte] também", disse o presidente em uma entrevista televisiva concedida no início do mês.
Nos EUA, país citado por Bolsonaro e apoiadores como um possível exemplo, as armas são parte prevalente da cultura nacional e a relativa facilidade em adquiri-las e portá-las contrasta com o atual quadro brasileiro.
Armas asseguradas pela Constituição
A posse e o porte de armas nos EUA são protegidos constitucionalmente desde o final do século 18. A Segunda Emenda à Constituição, que passou a vigorar em 1791, determina: "Uma bem regulamentada milícia sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido".
A ambiguidade do texto, no entanto, provocou diferentes interpretações ao longo do tempo. Opositores do comércio e do livre porte de armas apontam que a emenda condicionaria o direito de possuir e portar armas ao pertencimento a uma milícia de autodefesa estadual. Já os defensores da posse e do porte preferem se concentrar na segunda parte para apontar que o direito é assegurado para qualquer cidadão.
A Suprema Corte dos EUA demonstrou concordar com a segunda visão. Em 2008, o tribunal proferiu uma decisão histórica, que entendeu que a Segunda Emenda protege o direito individual de os cidadãos possuírem e portarem armas, e que esse direito não depende da formação de milícias.
A decisão ocorreu após um cidadão do distrito federal de Columbia (onde fica capital do país) ter entrado com uma ação contra uma lei local nos anos 1970 que proibiu que os cidadãos possuíssem e portassem pistolas e obrigava que fuzis e escopetas fossem mantidos com travas no gatilho. Em 2010, a Suprema Corte também estendeu esse entendimento aos 50 estados americanos.
Variações estaduais
As decisões do Supremo em 2008 e 2010 foram marcos para derrubar leis locais e estaduais que proibiam a posse e o porte de armas. No entanto, outras questões relacionadas a armas de fogo, como registro e compra e venda de determinados calibres, continuam a variar bastante dependendo do estado e cidade. Algumas legislações são extremamente liberais. Outras, mais severas.
Em 36 dos 50 estados americanos – entre eles Alabama, Alasca e Flórida – não é preciso nem sequer registrar a arma ou obter uma licença para a posse e o porte. Em 45 estados é totalmente legal exibir armas de cano curto (como pistolas) em público – e em 31 não é necessário uma permissão para isso. Dezenas de estados, como o Texas, também permitem andar exibindo armamento pesado, como fuzis semiautomáticos. Doze estados, entre eles o Mississippi, também permitem o porte oculto de armas sem a necessidade de permissão.
Já a Califórnia proíbe a exibição de fuzis em público – a lei foi assinada em 1967 pelo então governador e futuro presidente Ronald Reagan, que disse à época disse que armas "eram um jeito ridículo de resolver os problemas que afetam o cidadão de bem”. Em 2011, o estado também baniu a exibição de armas de cano curto.
Nove estados também exigem um período de espera para adquirir armas, que podem variar de 24 horas até 14 dias após a apresentação da intenção da compra. Sete estados e o Distrito de Columbia também proíbem a venda de fuzis de assalto.
Leis federais
Desde 1993 uma lei federal tornou obrigatório que lojas de armas verifiquem os antecedentes criminais dos compradores. Quem já foi condenado a um crime com pena superior a um ano não pode comprar uma arma. Também há restrições para pessoas com problemas mentais.
Em 2017, 181 mil pedidos de compra de armas foram negados. Mas a lei federal de 1993 tem uma deficiência: ela não exige a checagem de antecedentes nas vendas entre pessoas físicas. Estima-se que pouco mais de um quinto das transações anuais envolvendo armas nos EUA ocorra entre indivíduos. Apenas 19 estados possuem legislação própria para exigir a checagem nesses casos. Em 2017, uma pesquisa apontou que 22% das pessoas que haviam comprado armas nos dois anos anteriores não passaram por qualquer checagem.
Em meio às disputas violentas entre quadrilhas de gangsteres dos anos 1930, o governo federal também aprovou uma lei para desencorajar a proliferação de armas automáticas - como metralhadoras - entre civis, passando a exigir o registro dessas armas e taxas adicionais. Em 1986, uma lei ainda mais severa baniu a venda de novas armas automáticas.
No entanto, a lei de 1986 estabelece que as armas que foram fabricadas no período anterior à imposição da regra ainda podem ser possuídas e vendidas. Em 2016, o governo americano indicou que 170 mil metralhadoras pré-1986 continuavam registradas nos EUA.
Após o massacre de Las Vegas em 2017, o governo federal também invocou a legislação dos anos 1930 para banir a venda de "bump fire stocks”, equipamentos que podem fazer um fuzil de assalto atirar como uma metralhadora.
Em 1994, o governo federal também impôs uma proibição da venda de fuzis de assalto em todo o país, assim a como a comercialização de carregadores de munição de grande capacidade – o atirador que em 2016 matou 49 pessoas em uma boate de Orlando, por exemplo, usou carregadores que armazenavam 30 projeteis. Só que a medida expirou em 2004. Desde então passou a caber aos estados decidir sobre o tema, mas só sete estados baniram a venda de fuzis de assalto. Apenas nove estados e o distrito de Columbia também proíbem carregadores de alta capacidade.
O maior arsenal por habitante
Os dados sobre o número de armas em poder de civis nos Estados Unidos variam dependendo da fonte, mas praticamente todas as pesquisas apontam que o país tem o maior arsenal do mundo. A falta da necessidade de registros em vários estados e de um arquivo de dados nacionais acaba dificultando levantamentos precisos.
Em 2018, pesquisa do projeto Small Arms Survey estimou que existem pelo menos 390 milhões de arma de fogo em poder de civis no país – mais de uma por habitante. O projeto apontou ainda que metade das armas de fogo que pertencem a civis no mundo estão nos EUA, apesar da população do país mal alcançar 5% da mundial.
Já uma pesquisa de 2015 que contou com a participação da Universidade de Harvard apontou que existem 265 milhões de armas entre a população. Outro levantamento do instituto Pew de 2018 apontou que 43% dos americanos disseram possuir uma arma ou viver em uma casa onde existe uma.
Curiosamente, Harvard apontou que metade das 265 milhões de armas indicadas em suas pesquisa estão em poder de 3% da população adulta. Neste grupo estão 7,7 milhões de adultos que possuem entre oito e 140 armas.
Em 2017, uma pesquisa Pew mostrou que 67% dos donos de armas citaram "proteção” como razão para possuir armamento. Outros 38%, caça.
Um mercado sempre em alta
Existem mais de 50 mil lojas de armas registradas no país, segundo a agência federal reguladora. O número supera com vantagem a quantidade de lanchonetes da rede McDonald's espalhadas pelo país (pouco mais de 14 mil). Várias dessas lojas estão instaladas em shoppings. Em alguns estados do país, como a Virgínia Ocidental, existem mais lojas de armas do que museus e bibliotecas. O número é maior se forem considerados colecionadores autorizados a vender armas, lojas de penhores e feiras itinerantes.
Em 2016, 11,5 milhões de armas de fogo foram fabricadas no país – 30 anos atrás, a produção mal passava de 3 milhões.
O apetite americano por armas também transformou o país em um grande importador. Um levantamento da Bloomberg apontou que três em cada dez armas vendidas são importadas. Em 2016, 5,1 milhões de armas estrangeiras chegaram ao mercado americano. Entre as maiores exportadoras está a brasileira Taurus, que vendeu mais de 700 mil armas nos EUA naquele ano. A brasileira só fica atrás a austríaca Glock, que vendeu 1,2 milhão.
O preço das armas é um forte incentivo para a compra no país. Em feiras de armas um fuzil de assalto novo pode custar apenas 450 dólares, mais barato que um smartphone da Apple. Um modelo de revólver da Taurus que não sai por menos de 3 mil reais no Brasil – e que pode sair ainda mais caro por causa do processo de registro – custa metade do preço em reais nos EUA.
Pesquisa Pew de 2007 apontou que sete em cada dez adultos americanos declarou já ter atirado com arma de fogo, incluindo os que não possuem armas.
Mortes que contrastam com países ricos
Os EUA são o segundo país com o maior número de mortes por arma de fogo do mundo – atrás apenas do Brasil. Em 2016, foram 38 mil. A proporção de mortes causadas por armas de fogo no país em 2016 foi de 12 por 100 mil habitantes, segundo o Departamento de Saúde Americano.
Nenhuma outra nação desenvolvida tem uma proporção tão alta. No mesmo ano, a da Alemanha foi de 0,9. A do Japão, 0,2. A proporção americana é semelhante à de países como República Dominicana e Paraguai.
Mais da metade (59%) das mortes por arma de fogo nos EUA em 2016 consistiu em suicídios. Uma parcela pequena (2%) foi causada por acidentes com armas. O restante, homicídios. No Brasil, os homicídios representaram 94,8% das mortes por arma de fogo em 2014.
A taxa de suicídios por 100 mil habitantes dos EUA é a 30° do mundo, mas em relação à preferência por armas como meio para se matar, o país aparece em 2° lugar, apenas atrás da Groenlândia.
Defensores de armas nos EUA costumam propagandear que elas são necessárias para a autodefesa. Mas dados de 2017 nos EUA mostram que para cada "homicídio justificável” com arma de fogo por um cidadão em autodefesa, ocorrem 34 homicídios com intenção criminosa – e mais de 70 suicídios.
As armas de fogo são o instrumento preferencial de homicidas nos EUA. Elas foram usadas em 72% dos homicídios registrados no país em 2017. No Brasil, a proporção foi de 71,7% em 2016. Apesar disso, o número de homicídios por arma de fogo nos EUA é menor do que algumas décadas atrás. Em 1981, a taxa foi de 6,6 por 100 mil habitantes. Em 2016, foi de 3,44.
Os dez estados que lideram o número de mortes por arma de fogo no país também possuem algumas das legislações mais frouxas de controle. Entre eles estão o Alabama e o Mississippi. Já Nova York, que tem uma legislação rígida, tem uma das menores incidências do país.
A ocorrência regular de chacinas por armas de fogo nos EUA também contrasta com outros países desenvolvidos. Segundo levantamento do jornal Washington Post (WP), ocorreram 161 massacres no país com mais de quatro vítimas desde 1966, quando um estudante armado matou 16 pessoas na Universidade do Texas em Austin. O total de vítimas nesses episódios foi 1.148 pessoas – incluindo 189 crianças e adolescentes.
A pesquisa exclui disputas de gangues, assaltos violentos e assassinatos envolvendo brigas domésticas. O mais recente ocorreu no dia 23 de janeiro, quando cinco mulheres foram mortas por um funcionário de um banco na Flórida.
O WP também apontou que 308 armas foram encontradas em poder dos atiradores nesses 161 massacres. Destas, pelo menos 172 foram compradas legalmente. Em vários casos, os mecanismos de checagem falharam em apontar que os compradores tinham histórico de problemas mentais.
Opinião pública
A opinião dos americanos sobre a venda, posse e porte de armas de fogo é complexa e varia conforme o tipo de armamento e proposta de controle. O país também já foi menos apaixonado por armas. Uma pesquisa do instituto Gallup de outubro de 2018 mostrou que 61% desejam leis mais rígidas para venda de armas. Outros 30% afirmam que as atuais são suficientes e 8% desejam legislação mais liberal. Quase 60% dos americanos também afirmaram que estão insatisfeitos com a atual legislação sobre armas e 51% querem mais leis sobre o tema. Três em cada quatro também são favoráveis a um período de espera de 30 dias para compra e 70% desejam que todas as armas sejam registradas junto à polícia.
Por outro lado, apenas 28% concordam com uma proibição de armas de cano curto (como pistolas) para civis. Outros 71% são contra tal proposta. Quando o assunto envolve armas semiautomáticas, como fuzis de assalto, 40% se mostraram favoráveis à proibição da fabricação e posse, enquanto 57% são contra. Em 1959, 60% dos americanos eram favoráveis à proibição da venda de armas de cano curto para civis e, em 1990, 78% desejavam leis mais rígidas.
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