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Alemanha registra alta em número de casos de feminicídio

Rina Goldenberg
25 de novembro de 2020

Todos os dias, um homem tenta matar sua parceira ou ex-parceira na Alemanha – uma em cada três tentativas é bem-sucedida. Ativistas pedem mais conscientização.

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Mulher se ajoelha em frente a um túmulo num cemitério em Hamburgo em 5 de junho de 2018.
Alemanha liderou a lista de feminicídios na Europa em 2018Foto: picture-alliance/dpa/C. Klose

Era uma noite de domingo no início de 2019, em Frankfurt, sudoeste da Alemanha. Uma médica de 32 anos foi esfaqueada 18 vezes por seu ex-parceiro. Ela morreu poucos minutos depois na rua em frente à porta de sua casa.

Julia Schäfer, então promotora em Frankfurt, foi chamada ao local. Trata-se, infelizmente, de um caso típico, diz ela.

"Ela o havia deixado e ele estava tentando reconquistá-la já fazia um tempo. Sentindo-se ameaçada e abusada, ela decidiu recorrer à polícia, obtendo então uma ordem judicial restritiva contra o ex-parceiro. Na noite em questão, ele a esperou por horas, mas quando ela reiterou que estava tudo acabado entre eles, ele puxou a faca que trouxera e a matou", conta Schäfer.

Na Alemanha, todos os dias um homem tenta matar sua parceira ou ex-parceira. A cada três dias, uma tentativa é bem-sucedida. As estatísticas apontam para um aumento na violência doméstica contra as mulheres e um número continuamente alto de feminicídios em 2019. Na União Europeia, a Alemanha liderou a lista de feminicídios em 2018.

O assassinato de uma parceira não acontece do nada, diz Julia Schäfer, que atualmente chefia uma unidade de prevenção ao crime no Ministério do Interior do estado de Hessen.

"Muitas vezes se trata do clímax extenuante após muitos anos de violência doméstica, que começa com insultos e humilhação, além de pressão econômica", aponta.

Imagem de violência doméstica.
A violência doméstica começa com insultos, humilhação e abuso físico – e às vezes termina em assassinatoFoto: Imago/photothek

Terminologia e conscientização

Ativistas dos direitos das mulheres deploram a forma como são tratados tais crimes nos tabloides alemães, que regularmente sensacionalizam e romantizam tais assassinatos, escrevendo sobre "crimes passionais", "tragédias de amor" e "tragédias familiares".

Esse tipo de formulação influencia a maneira como as pessoas pensam e implica que o crime é um assunto privado, um incidente singular, e não parte de um problema na sociedade alemã como um todo, aponta Vanessa Bell, da ONG Terre des Femmes.

"O feminicídio ainda é um tema tabu na Alemanha", afirma Bell. As estatísticas mostram apenas os casos de acusações ou condenações. De acordo com um estudo realizado em 2014 em escala europeia, apenas cerca de um em cada três casos de violência doméstica é denunciado à polícia.

Homicídio doloso ou culposo?

No caso de esfaqueamento em Frankfurt, o agressor foi considerado culpado de assassinato e condenado à prisão perpétua.

Em muitos casos semelhantes, no entanto, os tribunais alemães são mais brandos, aprovando um veredicto por homicídio culposo, que acarreta uma sentença de até dez anos.

Balões com os dizeres "As crianças têm direito à proteção contra a violência" em uma manifestação por mais vagas em abrigos para mulheres, em 2 de julho de 2015, em Berlim.
Muitas vítimas de feminicídio deixam para trás crianças que testemunharam o crime e ficaram traumatizadasFoto: picture-alliance/dpa/J. Carstensen

Em cada caso, todas as circunstâncias são levadas em consideração e o juiz, muitas vezes, vê a angústia emocional do agressor como uma circunstância atenuante, sugerindo que o autor do crime, tomado de ciúmes, infligiu dor a si mesmo ao matar a mulher que amava.

Muitos juízes remetem para um veredicto dado em 2008 pelo Tribunal Federal de Justiça, o supremo tribunal alemão para processos civis e criminais. O tribunal anulou o veredicto de homicídio doloso de um tribunal inferior e decidiu que o réu não havia tido a intenção de matar. Basicamente, não foram encontradas motivações para o crime, que são o pré-requisito para uma sentença de homicídio doloso. Em vez disso, a decisão afirmava que "a separação foi uma iniciativa da própria vítima e, ao matá-la, o acusado se privou do que realmente não queria perder".

"O problema é que isso constitui uma forma de culpar a vítima", ressalta Leonie Steinl, da Associação Alemã de Mulheres Juristas (Deutscher Juristinnenbund).

O veredicto também aceita que "uma mulher foi morta porque o agressor não permitiu que ela levasse uma vida independente. Esse crime é o resultado de um conceito de propriedade e desigualdade baseado em gênero", explica Steinl.

E esta é a própria definição de feminicídio, afirma – o assassinato de uma mulher por causa de seu gênero.

"Meu ex me atacou com um facão"

Viés anti-minoritário

"Quando um homem mata sua ex ou atual parceira porque ela o deixou ou pretende deixá-lo, isso normalmente deve ser visto como assassinato, pois o ato é motivado por um conceito de propriedade baseado em gênero que viola a dignidade humana", diz Steinl.

A jurista acrescenta ainda que tal conceito patriarcal é a base para os chamados crimes de "honra", quando uma menina ou mulher é morta por parentes por supostamente ter trazido desonra à família.

Dessa forma, a propriedade patriarcal é o pano de fundo tanto para os crimes de "honra" quanto para o assassinato de uma ex-parceira por ciúmes.

"Em todas essas constelações, as mulheres são mortas por razões relacionadas ao gênero porque os perpetradores não permitem que elas levem uma vida independente com base em crenças e valores que diferem dos seus próprios", disse Steinl.

"Mas se compararmos a jurisdição nesses casos, veremos que os tribunais alemães colocam os crimes de 'honra' num contexto social diferente e emitem sentenças mais duras para eles", diz.

"Os feminicídios na Alemanha têm muito mais probabilidade de serem socialmente reconhecidos como um problema se puderem ser atribuídos exclusivamente a minorias religiosas ou étnicas. Porém, a verdade é que dois terços dos agressores são cidadãos alemães", disse Vanessa Bell, da Terre des Femmes alemã.

"A violência doméstica ocorre em todas as partes da sociedade; não é só uma questão de religião, nacionalidade ou educação", diz a ex-procuradora Julia Schäfer. "É nossa obrigação não fazer vista grossa e não dizer que isso não é da nossa conta, mas sim nos envolvermos, oferecermos ajuda ou chamarmos a polícia."

Mulher segura uma cruz onde se lê "nenhuma a mais" durante uma passeata exigindo justiça para as vítimas de violência de gênero e feminicídios na Cidade do México, em 16 de agosto de 2020.
Os protestos anti-femicídio no México se tornaram um exemplo para feministas no mundo todo Foto: Reuters/R. Cunha

Avanços no horizonte

A Alemanha assinou a convenção de Istambul do Conselho da Europa em 2018. Trata-se do primeiro documento jurídico vinculativo do mundo para prevenir e combater a violência contra as mulheres, reconhecendo o feminicídio como um problema estrutural na sociedade. O texto coloca ênfase na proteção das vítimas e especifica quais medidas devem ser implementadas no sistema jurídico alemão.

Em 2021, uma equipe de observadores examinará o progresso feito na Alemanha. Os ativistas dos direitos das mulheres esperam que isso dê o impulso necessário para treinar policiais e juízes, expandir o atendimento psicológico e jurídico às vítimas, lançar campanhas de conscientização nacionais e aumentar o número de abrigos para mulheres, que ainda é muito baixo. Todos os anos, cerca de 30 mil mulheres procuram vaga em um abrigo, o dobro do que há disponível.

"A Alemanha gostaria de assumir um papel de liderança na luta contra a violência de gênero, mas até agora, infelizmente, está ficando para trás", avalia Leonie Steinl, da Associação Alemã de Mulheres Juristas, pedindo mais conscientização.

"A maioria das pessoas jamais ouviu o termo feminicídio antes – ou acha que isso só acontece no México, onde mulheres são sequestradas, estupradas, mortas e esquartejadas. Pessoas em todo o mundo têm saído às ruas para falar sobre o feminicídio – mas na Alemanha, isso ainda não é um tema para debate público. Nisso, podemos aprender muito com outros países", afirma.