No início deste mês, um jovem baiano foi encontrado morto após sua banca de TCC. A gravação da apresentação não foi divulgada, mas, segundo relatos, uma professora que integrava a banca fez duras críticas à pesquisa do estudante e chegou a desmerecer toda a vida acadêmica do jovem.
Não estou culpando a professora pela morte do aluno e não irei entrar no mérito do caso em questão, até porque não tive acesso à gravação da apresentação. No entanto, o caso levou para fora dos muros da universidade uma velha questão para quem está dentro e que merece ser discutida: o assédio de docentes universitários na graduação e pós contra discentes e orientandos.
Nada do que irei escrever a seguir deve assumir uma figura de generalização, ou seja, nem todos os docentes são abusivos. Ouvi o relato de mais de 50 vítimas de abuso cometido por algum professor ou orientador, espalhadas por todo o país. Cada uma das palavras que irei escrever é fruto direto desses relatos, e espero fazer jus à confiança que depositaram em mim. Para preservar suas identidades, usarei pseudônimos.
Ofensas e ameaças
Existe uma cultura do docente como detentor do conhecimento e agente que merece mais respeito do que o aluno devido aos títulos que possui e às universidades internacionais em que se especializou. Isso cria um cenário propício a relações tóxicas e abusivas e torna, para muitos estudantes, difícil perceber abusos.
É comum acharem que se trata apenas do jeito do professor e que, por ser uma referência na área, ele tem o direito de ser grosso e depreciar os trabalhos do aluno, que faz isso para ajudar e que aceitar é sinônimo de respeitar. Nesse cenário, muitas vezes guiados por ego, é comum docentes fazerem com que seus estudantes se sintam incapazes ou não merecedores de ocupar a vaga que conquistaram, segundo relatos.
Notei um ponto em comum entre os relatos: quase todas as vítimas em algum momento foram, chamadas de burras em alto e bom tom, algumas vezes em público, ouviram a palavra "lixo" como definição de suas produções e tiveram suas trajetórias acadêmica desvalorizadas.
Pedro, estudante da UFABC, se lembra de uma professora que dizia coisas do tipo: "vocês nunca vão conseguir trabalho" ou "minha filha de 5 anos conseguiria fazer isso melhor que vocês". Nesses casos, o resultado em comum foi: se sentir constrangido, desvalorizado e cogitar abandonar a universidade. Alguns inclusive passaram a tomar medicamentos e fazer terapia após o ocorrido.
Há docentes que utilizam a mão de obra discente para tarefas que só beneficiarão os próprios professores. Para isso, geralmente lançam mão de ameaças, como corte de bolsas, e focam em estudantes de baixa renda, que precisam desses auxílios.
Hellen, estudante da UFPEL, já passou por essa situação: "Ele mandava eu digitar algumas coisas para ele depois da aula e dizia que poderia perder minha bolsa caso não fizesse. Disse também que, como professor da disciplina de TCC, estaria na minha banca e me daria zero."
Estudantes de baixa não sofrem apenas com a possibilidade do corte de bolsas. Débora, ex-aluna da PUC, passou por uma situação constrangedora: "Ao final da prova, sabendo que eu e um outro colega estávamos indo bem, ele nos abordou e disse que era muito bom ver alunos que realmente estavam interessados em estudar e não eram como aquele 'pessoal' do Fies e Prouni que não queriam saber de nada. Respondi dizendo que eu era aluna do Fies e meu colega do Prouni. Depois disso, sua postura mudou e se tornou mais distante."
Mulheres são as maiores vítimas
Um outro tipo de relato recorrente foi o de discriminação entre estudantes homens e mulheres e de como elas geralmente são as maiores vitimas de abusos dos mais diversos tipos.
Karen, ex-estudante de engenharia na UTFPR, sofreu muito por ser mulher em um curso historicamente machista. Já ouviu frases do tipo "você é menina, nem deveria estar aqui" e passou por situações de ser ignorada quando levantava a mão para tirar uma dúvida. Ela não está sozinha. Ouvi relatos de um professor do departamento de Química da USP de Ribeirão Preto que dizia: "Se as mulheres quiserem sair da aula e ir comer algo está tudo bem, porque o assunto que seria tratado é mecânica, e mulher não entende disso."
Para Karen, a situação foi além em uma disciplina no segundo semestre que serviria de base para o restante do curso. "O professor falava que, para eu passar na matéria, teria que acontecer uma troca de favores. Obviamente, reprovei." Precisou cursar a disciplina outra vez, e adivinhem? Era o mesmo professor, e a situação não melhorou: "Eu entrava e sentava o mais longe possível e só chorava, não conseguia olhar para ele, e a segunda reprovação veio. Eu estava para abandonar o curso da minha vida, o meu sonho, quando ele se tornou coordenador, e a matéria foi assumida por outro."
Com um professor diferente, cursando a disciplina pela terceira vez, ela foi aprovada. No entanto, o estrago estava feito para sempre: até hoje ela não se sente segura para atuar na área abordada.
Situação pior na pós-graduação
Na pós-graduação, a situação tem o potencial de piorar drasticamente. O contexto é favorável para isso: o contato com o professor, agora na figura de orientador, é mais constante. Além disso, o docente muito provavelmente é uma grande referência na área, com reconhecimento internacional, e tem influência o bastante para prejudicar toda a carreira, acadêmica ou na iniciativa privada, do orientando caso queira. Nesse cenário, não é incomum encontrar grupos de orientandos que estão doentes, sobrevivendo à base de remédio e tem crises de choro após reuniões.
Na pós, há uma maior arbitrariedade, subjetividade e abuso de poder nas tomadas de decisão entre os docentes. E isso acontece desde os processos seletivos. Ouvi o caso de um orientador da UNESP que, segundo relatos, há anos só aceita mulheres e faz parte de um grupo de docentes que competem pela orientanda mais bonita, até mesmo no decorrer da pesquisa. Ignorar ideias e opiniões do orientando seria uma prática comum.
Pedro, ex pós-graduando na USP, passou por uma relação abusiva com seu orientador: "Uma vez, em um evento, ele pediu que a gente passasse a camiseta dele, mas não tinha ferro lá e dissemos que a gente deveria ir à casa de alguém. Ele começou a gritar, como se fôssemos animais, para irmos logo." O cenário era de medo, chantagem emocional e ameaças: "Dizia que, se fôssemos embora, a gente estaria ferrado e que só iríamos conseguir as coisas debaixo da asa dele."
Medo de denunciar
Você pode estar se perguntando: por que não denunciam? Há muito medo de denunciar e sofrer retaliação, de ser reprovado nas disciplinas que o docente em questão leciona e de ser cortado de projetos, bolsas e outras oportunidades.
Além disso, faltam canais oficiais e imparciais para isso, fazendo com que quem tenta mudanças tenha a sensação de estar lutando sozinho. Falei com uma professora de uma universidade federal em Minas, que preferiu não expor o nome da instituição, que me contou que tentou implementar uma comissão de proteção às vítimas durante a investigação, no sentido de evitar que sofram retaliações, mas não encontrou apoio de seus colegas.
Na Unesp de Bauru, por anos que um professor em questão doi alvo denúncias de assédio de cunho sexual e nada aconteceu. Foi preciso que um grupo de alunas se mobilizassem para chamar a atenção da mídia para o caso. Somente depois disso a instituição se pronunciou, há algumas semanas, e disse que a investigação está sendo feita.
Gostaria de concluir este texto trazendo uma resposta para o problema, mas não tenho. A situação é incrivelmente problemática e enraizada. Talvez eu esteja sendo ingênuo, mas acredito que um bom caminho para a mudança seja começarmos a falar mais sobre o assunto, levando-o para fora dos muros dos departamentos e das universidades, e parar de banalizar as formas mais sutis e diárias que o abuso assume.
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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1
O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.
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