A volta por cima
26 de julho de 2003Domingo, 27 de julho de 2003, fim da 90ª Volta da França, uma das mais emocionantes dos últimos tempos, depois dos seguidos passeios do americano Lance Armstrong sobre os concorrentes. Desta vez, porém, o quinto pentacampeão do Tour de France teve de novo um adversário à altura, Jan Ullrich, que há exatos seis anos tornara-se o primeiro alemão a vencer a principal competição do ciclismo mundial.
Desde então o ciclismo entrou em moda na Alemanha. Mas Ullrich revelou não estar preparado para sustentar-se no topo. "Ele é o maior talento que existe", admite Walter Godefroot, chefe da equipe Telekom, com a qual o alemão começou e atingiu o auge de sua carreira profissional. Mas "Jan tem um problema: sua displicência. Ela o derrubou", declarou o belga de 60 anos há quase uma semana. "Ele dormiu muito tempo. Se ele acordar, será imbatível", prevê.
Nascido para vencer
Jan Ullrich nasceu em Rostock, na então Alemanha Oriental, de regime comunista. Seu talento foi reconhecido logo cedo e com 13 anos mudou-se para a Escola Esportiva Infanto-Juvenil Werner Seelenbinder, em Berlim, para ser desenvolvido num ciclista para provas de estrada. Com a reunificação da Alemanha, Ullrich transferiu-se para Hamburgo em 1992.
No ano seguinte, tornou-se campeão mundial amador. Aos 20 anos, conquistou a medalha de bronze na modalidade contra o relógio em 1994. Os êxitos chamaram a atenção das equipes profissionais para o prodígio. Godefroot e a Telekom levaram a melhor sobre a concorrência e contrataram Ullrich em 1995.
Direto para o auge
O atleta mudou-se para Merdingen, próximo à fronteira francesa no sudoeste alemão. Em sua primeira participação na Volta da França, em 1996, o menino-prodígio mostrou logo ser capaz de pedalar junto com as maiores estrelas mundiais e ficou em segundo lugar. Doze meses depois, retornou a Paris como vencedor da competição. Na Alemanha, passou a ser reverenciado como herói nacional.
A fama parece ter pesado demais sobre Ullrich. Deixou de treinar no inverno, chegando ao verão europeu ainda com sobras de gordura. Nunca mais atingiu na Volta da França o mesmo desempenho. Apesar disso ficou em segundo lugar em 1998, 2000 e 2001. Neste período, obteve sua maior conquista na Olimpíada de Sydney com a medalha de ouro na prova contra o relógio.
Um ano para esquecer
Em 2002, o alemão deixou-se abater pelo destino. Uma lesão no joelho o afastou das bicicletas. Duas cirurgias e muita fisioterapia foram necessárias. O problema físico influenciou seu lado psicológico. Deprimido, buscou apoio nas drogas. Numa noite de maio, provocou um acidente de trânsito e, diante de seu evidente estado de embriaguez, fugiu do local. No mês seguinte, foi pego de surpresa com a visita de fiscais de doping. O exame deu positivo e Ullrich admitiu ter tomado anfetamina numa boate, para combater a depressão.
Sua sétima participação na Volta da França estava definitivamente cancelada. Suspenso por oito meses, perdeu o patrocínio da Adidas (300 mil euros ao ano) e foi demitido da Telekom, por não aceitar uma redução em seu salário de 120 mil euros. Não ficou sem equipe por muito tempo. Contratado pela Coast, que deu se transformou em Bianchi, mudou-se para a Suíça.
Desempenho acima do esperado
Pai de Sarah-Maria poucos dias antes da Volta da França, Ullrich largou desta vez em Paris tão motivado e bem preparado quanto nos melhores tempos. No ano do centenário da competição, o alemão sonhava em ganhar pelo menos uma etapa, mas jamais disputar o lugar mais alto do pódio na chegada em Paris.
Na 12ª das 20 etapas e primeira das duas provas individuais contra o relógio, Ullrich atingiu sua meta mínima. Aproveitando sua especialidade, o campeão de 1997 descontou 1min36s da vantagem de Armstrong e colocou-se na briga pelo título. Uma façanha inédita na história da competição.
Nos trechos montanhosos dos Pirineus, acompanhou de perto o tetracampeão, quando não ditou o ritmo do adversário. Ao largar na segunda prova contra o relógio e penúltima etapa, neste sábado, o menino-prodígio estava 1min05s atrás do americano na classificação geral. São Pedro, entretanto, não colaborou. Sob chuva, Ullrich pedalou forte e tinha tudo para virar o jogo. Mas tinha uma poça d'água no caminho. Numa curva tinha uma poça d'água. Ao atingi-la pela tangente, o pneu escorregou e o sonho do alemão foi pelo asfalto.
Quando parar de se perguntar por que no ciclismo não há pneus biscoito para chuva como na Fórmula 1, Ullrich poderá de novo encarar todos de cabeça erguida e lembrar que, em seu planejamento inicial, a disputa pela camisa amarela de líder da Volta da França só estava prevista para 2004.
Caso o destino não apronte novas surpresas e o herói não tenha uma recaída e hiberne no inverno, os fãs do ciclismo e os concorrentes podem estar certos. No ano que vem, Ullrich voltará às estradas francesas – e às provas olímpicas, em Atenas – de novo no melhor de sua forma.