A vida sob domínio do “Estado Islâmico”
6 de fevereiro de 2015É possível ter uma ideia da dimensão da tragédia no Iraque ao se conversar com os passageiros de um táxi coletivo, viajando de Erbil a Kirkuk. No banco da frente, está um homem grande, chamado Marwan. Ele pagou 5 mil dinares iraquianos (14 reais) a mais para poder sentar no lugar do carona.
Outro passageiro é Youssef, que move o olhar do para-brisa aos vidros laterais constantemente, aparentando estar tenso. O velho Ahmed parece cochilar, mas se revela desperto quando seu neto ameaça cair de seu colo.
Quase 80 quilômetros separam Erbil, no Curdistão iraquiano, da cidade petrolífera de Kirkuk, que era controlada por Bagdá até o avanço da milícia terrorista "Estado Islâmico" (EI), em junho do ano passado.
Apesar dos milicianos terem invadido grande parte do norte do Iraque, Kirkuk é protegida pelas tropas peshmerga curdas, que foram mais rápidas do que os combatentes do grupo armado radical.
Apoio inicial ao EI
No banco da frente, Marwan diz que não aguenta mais ficar em Mossul. Ele resistiu em sua casa até agora, mesmo depois da chegada de cada vez mais combatentes do "Estado Islâmico", que acabaram por dominar a cidade.
"No início, pensávamos que eles iriam sair depois de derrubarem os governantes", diz. Mas as pessoas que acabaram assumindo a administração eram conhecidas na cidade, já ocupavam cargos públicos na época do governo de Saddam Hussein. Por isso, segundo Marwan, não houve grande resistência da população local ao novo regime imposto pelo EI.
O próprio Marwan conseguiu de volta seu cargo na administração pública. "Pensávamos que seria tudo como antes", diz. Ele não sabia de onde vinha o dinheiro para pagar os salários, mas o que importava era que tudo era pago em dia.
Após a queda de Saddam, as pessoas já não estavam mais acostumadas com isso. A interminável disputa entre as facções políticas na cidade e na província e os conflitos com o governo central em Bagdá impediram o desenvolvimento de Mossul. A corrupção e o nepotismo se tornaram rotineiros. "As pessoas estavam cansadas", explica Marwan por que a população de início simpatizou com o Daesh – como o "Estado Islâmico" é chamado no mundo árabe.
Com dois milhões de habitantes, Mossul é a terceira maior cidade do Iraque e a primeira que foi tomada pelo EI. Em seguida, vieram Tikrit e pequenas cidades nas províncias de Salaheddin e Dyala e quase toda a província Anbar.
Alimentos enlatados proibidos
Estima-se que mais de 8 milhões de pessoas estejam vivendo sob o domínio do "Estado Islâmico" no Iraque e na Síria. Em termos de área controlada, o território do Daesh se estende do oeste do Iraque até o leste da Síria, com dimensões semelhantes às do Reino Unido. Nesse meio-tempo, as cidades de Kobane e as montanhas de Sinjar foram recuperadas. Mas essas foram derrotas mínimas para o EI, considerando-se os 230 mil quilômetros quadrados do califado autoproclamado.
Quem não conseguiu fugir teve de se submeter aos extremistas. No território controlado, não é permitido álcool nem música, exceto cantos islâmicos. Além disso, há a segregação por gênero, ocultando todas as meninas e mulheres.
Isso tudo é demais até para Marwan, um fervoroso sunita, mesmo que ele tenha chance de se dar bem no regime dos milicianos. O "Estado Islâmico" segue uma interpretação rígida da jurisprudência sunita. "Mas isso não é vida", argumenta o iraquiano de 46 anos.
Agora, até mesmo a venda de alimentos enlatados foi proibida sob o argumento de que seria contra a sharia. Assim, os comerciantes tiveram que retirar das prateleiras latas de feijão, lentilhas, frutas em calda e carne.
Cristãos foram os primeiros expulsos
Youssef acaba de passar dois dias em Mossul. Ele voltou à antiga residência para buscar documentos a fim de provar às autoridades que era mais um dos milhares de refugiados. Mas ele ouviu de vizinhos que o Daesh estava morando em sua casa e, por isso, teve que deixar a cidade outra vez – sem os papéis.
Quando os radicais islâmicos chegaram a Mossul, os cristãos foram os primeiros a serem expulsos. O EI tomou suas casas, móveis e jóias, além de raptar e violar as mulheres. Usaram megafones para pregar a conversão de todos ao islã. Foi iniciada a cobrança da jizya – imposto para cidadãos não muçulmanos num Estado islâmico. Nessas condições, a maioria dos cristãos preferiu deixar a cidade.
Youssef, de 53 anos, diz que não existem mais cristãos em Mossul. "Depois que os cristãos foram expulsos, o alvo foram os yazidis", conta o caldeu. Ele pertence ao maior grupo cristão dentro da diversidade étnica e religiosa iraquiana. No entanto, os caldeus já haviam sido reduzidos à metade desde a invasão americana e britânica em 2003 e a intensificação das atividades terroristas.
"Assim como nós, os yazidis são considerados infiéis", diz Youssef. Ele ouviu dizer que as mulheres da minoria religiosa são submetidas a casamentos forçados e tratadas como escravas.
Recentemente, mais de 200 yazidis de Mossul foram libertados, na estrada entre Erbil e Kirkuk. Eram velhos e doentes, dos quais o jihadistas provavelmente queriam se livrar.
Cobrança de aluguel
No Ocidente, o "Estado Islâmico" é considerado uma milícia terrorista brutal. Na prática, o fenômeno é muito mais complexo e, por isso, provavelmente não será passageiro. Estima-se que o EI tenha um contingente de 100 mil combatentes.
O turcomeno Ahmed diz que os extremistas tomaram sua casa em Tilkef – a cidade mais ao norte ocupada pelo EI, a cerca de 30 quilômetros de Dohuk. Ele conta que não estava em casa quando os radicais chegaram e ocuparam todas as residências desabitadas.
Agora, o EI começou a cobrar aluguel dos próprios proprietários das casas, conta Ahmed. O mercado imobiliário do califado tem regras homogêneas. O inquilino paga ao Daesh 83 dólares (230 reais) por semana por um apartamento e 125 dólares (347 reais) por uma casa. Conforme os três homens no táxi, o modelo está sendo aplicado em Tilkef, Mossul e também na província de Anbar. "O Daesh quer introduzir o socialismo", brinca Marwan.
A viagem chega ao fim no posto de controle na entrada de Kirkuk. Depois de registrados, os refugiados recém-chegados são interrogados pelo serviço de inteligência curdo. É hora de Marwan, Ahmed e Youssef recontarem suas histórias.