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A possível correlação entre soja e câncer infantil no Brasil

Clare Roth
31 de outubro de 2023

Pesquisa sugere que poluição da água por pesticidas pode estar por trás de casos de leucemia em crianças do Cerrado e da Amazônia, após expansão das plantações de soja nessas regiões em anos recentes.

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Duas colheitadeiras atravessam plantação de soja
Produção de soja na Amazônia brasileira aumentou exponencialmente em razão da alta demanda globalFoto: SILVIO AVILA/AFP/Getty Images

Em estudo publicado nesta segunda-feira (30/10) no jornal científico Pnas, da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, pesquisadores sugerem uma correlação entre o uso de agrotóxicos no cultivo da soja e mortes por leucemia entre crianças do Brasil.

Em anos recentes. produtores rurais das regiões do Cerrado e da Amazônia passaram a expandir o cultivo da soja, em substituição à criação de gado. Segundo a pesquisa, os pesticidas usados nessas plantações – principalmente o glifosato – acabam contaminando os rios e chegando até os reservatórios de água, o que pode contribuir para o surgimento de câncer e a subsequente morte de crianças.

A equipe de pesquisadores relata que, na fase inicial do estudo, cerca de metade das famílias que viviam nas áreas pesquisadas utilizavam poços artesianos para obter água. Os demais dependiam da água da superfície, que pode estar sujeita à contaminação. Os pesquisadores se concentraram nas mortes associadas ao câncer em crianças menores de 10 anos de idade que vivem em áreas rurais.

O estudo se baseia em dados de 2008 a 2019, quando houve um crescimento do cultivo da soja nos ecossistemas do Cerrado e da Amazônia. A análise de dados levou em consideração dois fatores principais: a proximidade entre os locais de residência das crianças enfermas e os rios, e a distância para hospitais que possuem tratamento contra o câncer infantil.

Concluiu-se que 123 crianças morreram de leucemia linfoblástica aguda (LLA) relacionados à produção da soja no período avaliado. Cerca da metade das mortes ocorridas no período de dez anos pode estar associada à maior exposição aos pesticidas,

A LLA é uma doença que pode ser tratada. O resultado do estudo parece confirmar que os únicos pacientes que morreram após a ampliação do cultivo da soja nessas regiões eram os que viviam a mais de 100 quilômetros de um hospital que oferece tratamento específico.

Aumento da produção de soja

Nas últimas décadas, a produção pecuária na Amazônia brasileira passou a ser substituída pela soja devido à alta demanda global que colocou o Brasil como o maior produtor mundial do insumo.

"A expansão ocorreu bastante rápido", observa a pesquisadora Marin Skidmore, professora assistente do Departamento de Economia Agrícola e de Consumo da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, que liderou a pesquisa. Segundo os cientistas, entre 2000 e 2019, a produção de soja do Cerrado triplicou, enquanto na Amazônia o aumento foi de 20 vezes.

De acordo com dados da ONG ambientalista WWF, em torno de 20% da produção global de soja é utilizada para o consumo humano, enquanto 80% se destina à alimentação de gado e para a avicultura, especialmente para produção de carne vermelha, frangos, ovos e laticínios.

O que o estudo não revela

A pesquisa, porém, é acompanhada de algumas ressalvas. Em primeiro lugar, o estudo não fornece uma relação causal entre as mortes por câncer e a exposição aos pesticidas, apresentando apenas uma associação entre os dois fatores.

Os pesquisadores destacaram que o trabalho foi desenvolvido de modo a eliminar outros fatores potencias. Não foi encontrada, por exemplo, nenhuma conexão entre o consumo da soja e o câncer.

Jörg Rahnenführer, diretor do Departamento de Métodos Estatísticos em Genética e Quimiometria da Universidade Técnica de Dortmund, que não esteve envolvido na pesquisa, critica os autores não terem considerado fatores externos com a profundidade necessária.

Quão perigoso é o glifosato?

"Apesar da conexão sugerida parecer plausível e possivelmente correta, há muitas outras explicações possíveis para as relações observadas nos dados. Os autores conduziram algumas análises adicionais bem ponderadas, mas vários outros fatores, como as variáveis socioeconômicas, não foram considerados."

Rahnenführer avalia que as conclusões dos autores se baseiam em suposições de que a poluição da água por pesticidas seria a culpada pelas mortes de câncer.Isso sugeriria que se poderia obter resultados mais confiáveis medindo diretamente a  poluição da água e os casos de câncer potencialmente relacionados. Por outro lado, reconhece que esse tipo de análise seria "muito mais complexa".

"Difícil imaginar causas além dos pesticidas"

Matthias Liess, diretor do Departamento de Ecotoxicologia do Centro Helmholtz para Pesquisas Ambientais (UFZ) em Leipzig, tampouco evolvido na pesquisa, avalia que, apesar das ressalvas, os dados são de qualidade, e a conclusão é sólida.

"É plausível que a associação entre o cultivo da soja ou ao uso de pesticidas com o adoecimento das crianças não seja apenas correlacional, mas que também haja uma relação causal", afirmou.

Indício disso é os pesquisadores terem constatado uma maior incidência de câncer em áreas localizadas rio abaixo das plantações de soja do que rio acima. Assim, os casos estariam de fato ligados à poluição da água. "É difícil imaginar outras causas além dos pesticidas nesse ambiente de impacto", reforça o toxicólogo.