A natureza não é culpada pelas mazelas do semiárido, diz Naidison Baptista
20 de dezembro de 2012DW Brasil: Qual o trabalho da ASA e do programa Um Milhão de Cisternas?
Naidison Baptista: O trabalho da ASA é buscar a viabilização do semiárido. A principal proposta da ASA é mostrar para o governo, para o país, para o público, para o mundo, que o semiárido não é um espaço geográfico inviável, que não é a natureza a culpada pelas mazelas e injustiças que existem no semiárido. Esse trabalho é mostrar de forma prática que, se o semiárido tiver acesso a políticas adequadas de convivência com a região, ele é um local viável.
Então esse é o principal objetivo da ASA, ou seja, inverter ou desconstruir uma imagem negativa do semiárido, de um povo que não é inteligente, que precisa só de assistencialismo, de um povo que não é capaz de resolver os seus problemas. E construir uma imagem positiva de um povo lutador, de um povo alegre, de um povo que tem uma cultura muito importante, fenomenal. E de um povo que produz conhecimento para resolver as questões da sua vida.
E de um povo que é constantemente injustiçado. Então, nós precisamos modificar essa modalidade de olhar o semiárido. E ao modificar, implementar políticas que sejam de convivência com o semiárido, e não de combate à seca.
Políticas de combate à seca são aquelas políticas que sempre se aproveitaram dos momentos de estiagem para enriquecer os que já são ricos, para aumentar o poder dos que já têm poder, e para deixar sem poder, sem recurso e sem acesso aos bens o que estão na miserabilidade do Brasil de hoje.
Essas são as políticas de combate à seca. As políticas de convivência com o semiárido são as políticas que ensinam as pessoas a conviver com o momento da natureza. Como na Europa se convive com a neve, se convive com o frio, se convive com as mais diferentes circunstâncias, aqui também nós podemos conviver com um espaço de menos água, com um espaço de mais sol, com um espaço diferente, só depende de políticas adequadas para isso. E essa é a proposta da ASA.
Por que até agora não houve uma política que considerasse o semiárido como semiárido, já que a seca não é um fenômeno novo?
Quem lucra com a política de combate à seca são os políticos. Com a política de combate à seca, por exemplo, se falta água, eles trazem água no carro-pipa. E ao trazer a água no carro-pipa, eles marcam o carro-pipa com seus nomes, eles abordam as pessoas na busca de que as pessoas troquem os votos por água. Ou seja, há um desrespeito profundo dos direitos das pessoas. E, para não morrer de sede, as pessoas são quase obrigadas a vender seus votos por poucos litros de água.
Quem lucra com isso são os prefeitos, são os deputados, são os senadores, são os governadores, que estão acostumados a se manter no poder à custa da miséria, da sede, da fome das pessoas.
Outra dimensão da política de combate à seca, por exemplo, são as grandes obras de armazenamento da água. O Nordeste, o semiárido tem imensos açudes. Mas essas grandes obras foram sempre construídas nas fazendas dos grandes latifundiários. Então são as pessoas que precisam da água, que trabalham por diárias muito baratas, que constroem grandes açudes com maquinários, etc, nas fazendas dos latifundiários.
Quando passa a seca, essas fazendas cercam aqueles açudes. E aqueles açudes ficam de propriedade dos fazendeiros, as pessoas não têm acesso à água. Aí, nós temos várias políticas que, ou são de concentração de renda, concentração da água, concentração do poder, ou são políticas assistencialistas de distribuição de alimentos, de distribuição de um carro de água, de distribuição de vales, de distribuição de bolsas, que mantêm as pessoas na dependência e na subalternidade.
Essas políticas visam pura e simplesmente à manutenção do estado de emergência, à manutenção do estado de injustiça, à manutenção do estado de dependência da população. Então o que nós precisamos e o que a ASA quer é quebrar esse processo. E construir políticas de convivência com o semiárido, porque essas são políticas que trazem a liberdade das pessoas, em vez de trazer a subalternidade das pessoas.
Até que ponto políticas sociais do governo, como o Bolsa Família, Bolsa Estiagem, aumentam a dependência da população do semiárido em relação ao Estado? Como a ASA pretende criar essa política sustentável para o semiárido?
Na leitura da ASA, as políticas do governo de transferência de renda não são más. Agora, elas devem ser entendidas como políticas provisórias, elas não podem ser entendidas como políticas definitivas.
Vamos pegar um exemplo: em vez de uma pessoa estar numa fila, dependendo do prefeito para receber um dinheiro ou uma cesta básica de alimentos, a pessoa recebe como direito seu uma transferência de renda de um valor determinado com o qual ela faz o que quiser. Então, isso garante à pessoa um mínimo de subsistência, um mínimo de vida. Isso não garante uma vida em abundância, mas um mínimo de vida. E isso não está ligado a nenhuma dimensão de voto.
As pessoas recebem aqueles recursos por um cartão, recebem numa agência bancária, foram cadastradas através de critérios e parâmetros objetivos. E se elas se sentirem injustiçadas, elas reclamam e o processo vai ser analisado. Então, eu acho que essas políticas contribuem no momento, porque nós temos uma imensidão de pessoas sem renda, elas contribuem para que as pessoas tenham algum dinheiro através de um processo de transferência de renda.
Agora, elas não podem ser assumidas na dimensão do definitivo. Elas têm que ser assumidas na perspectiva do provisório. E o definitivo vai estar onde? O definitivo vai estar na educação, o definitivo vai estar no acesso à terra, no acesso ao crédito, na assistência técnica, em programas de geração de renda.
O governo tem iniciado algumas coisas nesse sentido, mas em outros, ele nem tocou no assunto, por exemplo, da questão da terra. No interior do semiárido, se não tivermos um processo de acesso à terra, grande, forte e significativo, as pessoas nunca vão sair da Bolsa.
Da Bolsa Estiagem, da Bolsa Escola, porque elas não terão a terra para produzir e sem ter o espaço de produção, elas não irão entrar na dimensão da autonomia. Outras pessoas que já têm terra e que acessam o crédito, que acessam a assistência técnica, acessam cisternas, acessam outras dimensões, essas pessoas começam a entrar numa outra dimensão de política e numa outra dimensão de cidadania.
Então quanto à sua pergunta: o que a ASA está fazendo? A ASA primeiro investiu na questão da água, investiu na perspectiva da água para mostrar que no semiárido há água suficiente para a vida das pessoas. O problema do semiárido não é a falta de água, o problema do semiárido é a concentração da água nas mãos de poucas pessoas – dos mesmos ricos, dos mesmos latifundiários, dos mesmos políticos. Eles concentram as riquezas, eles concentram a educação, eles concentram a água.
Um dos programas-chave da ASA e que hoje está assumido como política pelo governo federal foram as cisternas. Nós hoje temos, entre cisternas construídas pela ASA e cisternas construídas pelo governo dos estados, por consórcios e outros parceiros do governo federal, perto de 650 mil cisternas construídas no semiárido.
Isso corresponde a 3 milhões de pessoas que têm acesso a água potável de qualidade e que antes estavam nas filas pedindo água aos políticos. Então nós temos aí uma dimensão muito forte e muito significativa e que mostra que não é a água o problema do semiárido, mas sim a repartição da água, a desconcentração da água, esse é o problema. E a ASA mostrou que é possível desconcentrar a água e desconcentrar com tecnologia simples e barata.
E o governo federal está assumindo esta proposta da ASA e transformando-a numa política para, segundo o governo Dilma, dentro do espaço de tempo de seu governo, chegar a 1.250.000 famílias no semiárido com acesso à água potável. O que é uma coisa muito interessante e muito boa.
Agora, há outras dimensões, por exemplo, como se reparte a água para a produção, porque essa cisterna é a água para o consumo humano. Nós precisamos que as pessoas tenham água para o consumo humano, com isso, elas têm mais saúde, mais tempo para estudar, elas têm autonomia, elas têm liberdade em relação aos políticos, ou seja, votar em que elas quiserem e isso já começa a acontecer no semiárido.
É uma revolução imensa e muito significativa. Nós estamos começando e já também com muito apoio do governo a democratização da água de produção, através de tecnologias de captação de água da chuva, que foram criadas pelos próprios agricultores na ASA. São mais de 80 tecnologias, das quais hoje estamos usando cinco preferencialmente.
Nós temos, por exemplo, a família que tem acesso à água potável e já tem acesso à água de produção, essa família, mesmo nesta seca, teve uma condição extremamente diferente daquelas que não têm a água de produção.
Por que algumas famílias têm acesso a essa tecnologia para a água de produção e outras não?
Para uma família ter acesso à tecnologia de produção, ela precisa ter terra, uma parcela mínima de terra onde ela possa trabalhar, onde ela possa fazer uma horta, criar alguns animais, ter um pequeno pomar. Então, um mínimo de terra é necessário para que ela possa utilizar, mas não apenas possuir, utilizar para a produção de alimentos.
Então, esse é um corte, nem todas as famílias que têm a cisterna de consumo humano têm terra suficiente para produzir. Mas boa parte tem, e nós já estamos começando e o governo já está apoiando esse outro processo. Embora ele não tenha falado de universalizar, embora tenha investido e o debate é um debate franco no sentido de ampliar o máximo possível as tecnologias de água para produção.
Agora a água para produção é mais devagar do que a outra. Quanto à outra, eu identifico e capacito a família, que colabora no processo e dentro de pouco tempo, eu tenho uma cisterna. Tal cisterna tem 16 mil litros.
A água de produção envolve tecnologias variadas: é uma cisterna calçadão, é uma cisterna de enxurrada, é uma barragem subterrânea, é um tanque de pedra, são poços – a depender da circunstância e da localidade. Então eu tenho de adequar a essas realidades e ela demora mais. A de consumo humano são 16 mil litros, a de produção são 52 mil litros.
Então ela demora mais, é um investimento maior. Ela leva mais tempo, mas ela está pegando fôlego e está caminhando e há ações da ASA e do governo do estado, todas na mesma perspectiva da água de produção.
Há diferenças locais no Nordeste quanto à estiagem? Ela castiga todo o semiárido?
Todo o semiárido está enfrentado esta seca, mas há pequenas diferenciações de acordo com regiões. Por exemplo, há região no Ceará que não choveu de jeito nenhum nesses últimos tempos. Há regiões na Bahia, por exemplo, a região onde eu habito, de Feira de Santana, Serrinha e tal, que agora em novembro choveu.
Não choveu para produzir alimento para os animais, mas choveu para fazer água. Quem tinha cisterna tem água, quem tinha os implementos para a produção tem água para os animais, então isso modifica a realidade.
Mas são modificações muito pequenas, o semiárido está enfrentando uma seca muito forte. Acho que poderíamos dizer o seguinte. Existem dois tipos de agricultores no semiárido. Aqueles que já têm acesso a processos de convivência com o semiárido, esses estão atravessando a seca com mais facilidade.
E os outros que não têm acesso a nenhuma tecnologia e só têm acesso à cisterna de consumo humano, esses estão vivendo melhor do que em outras secas, mais ainda com muita dificuldade, porque eles não têm alimento nem água para os animais. E há também aqueles que não têm acesso a nada, esses estão pura e simplesmente no Bolsa Família e no Bolsa Estiagem.
Mas os que já têm acesso a processos de convivência com o semiárido, quanto mais dimensão de convivência com o semiárido uma propriedade possui, mais ela tem resistência e capacidade de conviver com o semiárido.
Menciono o caso de um agricultor baiano que recebeu do projeto uma cisterna de produção e por economia dele ele construiu outra. E ele usa várias tecnologias de convivência com o semiárido. Numa visita que nós fizemos à propriedade dele na semana passada, ele me disse: "Olhe, eu tenho água para minha família e para os animais até o final de março."
Ou seja, daqui para lá com certeza vai chover e ele passou a época da seca toda bem. Porque ele conseguiu entender e aplicar na propriedade os princípios da convivência com o semiárido e principalmente os princípios da cultura da estocagem.
Na ASA falamos que a chave para a convivência com o semiárido é acesso à terra, acesso à crédito, acesso à assistência técnica e a implementação de uma política de estocagem. Estocar água para o consumo humano, estocar água para a produção de plantios e animais, estocar alimentos para os humanos e animais.
Na época em que a propriedade produz mais alimentos, em vez de ser desperdiçados, precisamos criar a mentalidade que eles precisam ser guardados para utilização em períodos menos generosos. Estocagem de sementes, leguminosas, grãos, etc, etc.
E conservar a caatinga, em vez de estar derrubando a caatinga para carvão, etc, conservar a caatinga, porque ela é um rico manancial de alimento humano e animal.
É esse arco de estratégias que vai garantir que a família perpasse uma época mais dura de estiagem.
A ASA criticou, por exemplo, a distribuição de cisternas de plástico pelo governo federal por, além de serem mais caras, elas não aproveitariam a força de trabalho da população do semiárido. Como é articulação entre a sociedade civil e o governo federal?
Nós nos articulamos muito tranquilamente. O primeiro elemento é ter uma noção exata de que só existe articulação de diferentes. E nós somos diferentes, o governo é governo e nós somos sociedade civil. As pessoas podem ter votado no governo Dilma, podem ter votado no governo Wagner lá na Bahia. Mas a ASA tem uma leitura crítica do governo.
Então se o governo estiver fazendo coisas ou processos que nós avaliamos que são na perspectiva com o semiárido, nós elogiamos. Não temos problema nenhum em elogiar qualquer governo. Para nós, não é a sigla que é interessante, mas as ações que o governo realiza na perspectiva da convivência com o semiárido.
E se o governo trabalhar em coisas que na nossa leitura dentro dos nossos princípios, nós avaliamos que são processos negativos, nós criticamos, nós vamos para a praça pública, nós fazemos manifestação, nós vamos publicar documentos. Essa tem sido nossa história.
Por exemplo, no ano passado, o governo Dilma resolveu não celebrar convênios conosco. Nessa mesma época de 2011. E nós fomos para a praça pública. Em Juazeiro, ocupamos a ponte sobre o rio São Francisco em Juazeiro.
Nós fomos contra a transposição do São Francisco, porque avaliamos que ela é mais uma obra para concentrar a água nas mãos de poucos, não tem nada de redenção de Nordeste. Que tudo isso é conversa fiada, é água para a produção e para a exportação de alimentos, para a Europa, para o Japão e para outros cantos, enquanto o nosso povo fica com fome.
Então o governo sabe disso. Nós somos contra as cisternas de polietileno e explicitamos várias questões. Dizemos que o governo é frágil na questão da reforma agrária, do acesso à terra. Por outro lado, avaliamos muito positiva a dimensão do governo de universalizar as cisternas, de assumir essa perspectiva, de ir ampliando bastante a questão das cisternas de consumo humano. De começar a discutir conosco a questão de bancos de sementes nativas e não de sementes transgênicas. De dar início a processos de educação contextualizada para convivência com o semiárido, ou seja, através do que a escola começa a debater o semiárido dentro dela e não a escola do semiárido debater São Paulo ou Europa.
Avaliamos esses elementos como elementos altamente valiosos e indicativos de que estamos construindo uma política de convivência com o semiárido. Agora, longe de estar estabelecida. Então nós vamos sempre, enquanto sociedade civil, estar ao lado do governo em elementos que avaliamos ser da proposta e da política da convivência com o semiárido e taxativamente contra elementos que continuam a política malfazeja de combate à seca.
O mesmo governo que no ano passado disse que não iria mais fazer convênios com a ASA já vai celebrar agora neste fim de ano convênios de cisterna de consumo humano e de produção num valor de quase 190 milhões de reais. Mas é o mesmo governo que convenia com as empresas para as cisternas de polietileno.
Nós elogiamos convênios que são feitos com os governos dos estados para as cisternas de placa, feitas com cimento, porque elas reproduzem um processo de convivência com o semiárido. E vamos bater sem dó nem piedade na perspectiva da cisterna de polietileno. Em algum lugar a gente ganha, em algum lugar a gente perde, mas a democracia é esse espaço e o governo não é homogêneo, é um governo de disputa. E nós estamos aí disputando uma parte do pedaço do semiárido. Essa é um pouco a nossa leitura.
Entrevista: Carlos Albuquerque
Revisão: Alexandre Schossler