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TikTok e a banalização da saúde mental

Nina Lemos
Nina Lemos
5 de setembro de 2023

Fiz um teste e descobri que tenho sintomas de "Transtorno de Despersonalização”. Quem disse isso foi uma moça que não é psicóloga, mas que tem mais de 140 mil seguidores nas redes. Socorro! Saúde mental é coisa séria

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Redes sociais na tela de telefone
Em abril de 2022, uma reportagem da revista Elle alertava sobre o boom de influenciadoras e usuárias do Tik Tok que estavam se autodiagnosticandoFoto: Jonathan Raa/NurPhoto/picture alliance

Se tem uma coisa que eu conheço nessa vida, infelizmente, é a síndrome de pânico. Isso porque passei décadas da minha vida sofrendo com os ataques. No momento, estou assintomática e tendo outros problemas (a vida não é fácil). Mas, graças às crises, que começaram quando eu tinha uns 17 anos, tenho uns 25 anos de análise e também tomo antidepressivo.

Só soube o nome da minha "doença” há alguns anos, quando pedi que meu psiquiatra brasileiro escrevesse uma carta para meu médico alemão. "TAG”, estava escrito ali. Em outras palavras: Transtorno de Ansiedade Generalizada.

Minha analista e meu psiquiatra nunca se importaram com nomes para meus sintomas. E eu gosto que seja assim.

Isso dito. Sempre achei que sofria de ansiedade. Mas, depois de passar cerca de três horas pesquisando conteúdo sobre transtornos psicológicos no TikTok e no Instagram, "descobri” que também "tenho” Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Fiz a descoberta vendo um vídeo onde uma moça dançava e apontava para sintomas do distúrbio que surgiam na tela. Eu tinha todos.

Por exemplo, sou desligada, bagunceira e às vezes mudo de assunto no meio de uma conversa. Mas, gente, quem não é assim? E esses são apenas traços de personalidades.

Claro que eu não acreditei no diagnóstico. Mas se eu fosse muito jovem, talvez acreditasse e teria mais um transtorno para acrescentar à minha bio do instagram. Não que eu faça isso. Mas tem muita gente que faz. E alguns viram até influenciadores e ganham dinheiro com isso.

Graças a um teste no Instagram, descobri também que tenho sintomas de "Transtorno de Despersonalização”. Quem me disse isso foi uma moça que não é psicóloga nem psiquiatra, mas que tem mais de 140 mil seguidores no Instagram e se diz especialista em ansiedade por, como eu, sofrer com o problema. Ela dá até um curso sobre ansiedade. Socorro.

Como assim uma pessoa que não é médica nem psicóloga dá e diagnóstico sobre ansiedade? Saúde mental é coisa séria.  Existem profissionais especializados para isso. Há um conselho de psicologia, um conselho de medicina. Essas são profissões regulamentadas. E, me desculpe, estudar sobre ansiedade ao ponto de achar que pode dar curso e atender pacientes não é ler uns textos na internet e ver uns vídeos no Youtube. Essa é uma função que exige: diploma, formação que leva anos, etc.

A mania da TDI

No momento, o transtorno da "moda” é o TDI, ou Transtorno Dissociativo de Personalidade, uma doença raríssima, onde um indivíduo que submetido a traumas pode desenvolver múltiplas personalidades.

Há mais de 4 bilhões de hashtags sobre TDI no Tik Tok.

No Brasil, o transtorno "bombou” depois que uma matéria foi exibida no Fantástico, da TV Globo, em 20 de agosto. Depois disso, jovens que dizem sofrer do transtorno aparecem aos montes. No entanto, os especialistas apontam que o transtorno é extremamente raro.

Um dos destaques da matéria foi Giovanna Blasi, que diz ter 18 personalidades. A moça, que tem mais de 378 mil seguidores no Tik Tok, vem causando muita polêmica. Isso porque muitos psicólogos e usuários das redes duvidam do seu diagnóstico, que não teria sido embasado por um laudo conclusivo.

Agora, Giovanna vem concedendo várias entrevistas sobre o tema e vem ganhando ainda mais seguidores.

Esse não é um fenômeno só brasileiro. Em abril de 2022, uma reportagem da revista Elle britânica alertava sobre o boom de influenciadoras e usuárias do Tik Tok que estavam se autodiagnosticando depois de ver vídeos na plataforma.

Não estou falando, de forma alguma, que não existam pessoas que realmente sofrem do transtorno. Elas existem e têm mais que ocupar as redes e se comunicar com pessoas que passam pelo mesmo. O problema é que a banalização não ajuda as próprias vítimas. Afinal, elas sofrem de um distúrbio sério. E que não tem nada de legal ou glamouroso. Além disso, não devem ser todas as pessoas que têm o transtorno que gostam de ver uma coisa tão dolorida ser transformada em "curiosidade de Tik Tok”.

Transtornos não podem ser tratados como modinha. Eles são coisas sérias. Que causam dor. E que não tem nada, absolutamente nada de glamouroso. Falo da parte que me cabe: ter "Transtorno de Ansiedade Generalizada” (nome que raramente uso, preciso falar que sou só ansiosa mesmo) não tem nenhuma parte boa ou "cool”. É só muito chato, incapacitante e horrível.

Claro, eu e amigas que sofremos do mesmo mal fazemos muitas piadas a respeito para aguentar o tranco. Mas saúde mental não é brincadeira. E nem devia ser "trend” do Tik Tok do estilo: "coisas que comprei nas férias”. O buraco é bem mais embaixo.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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O estado das coisas

Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.