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A guerra na Ucrânia e a mudança de paradigma da Alemanha

24 de agosto de 2022

Os seis meses desde o começo da invasão da Ucrânia pelos russos transformam também o perfil da Alemanha. Começa uma época de certezas esfaceladas, tabus políticos descartados e da necessidade de reavaliar o mundo.

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Em primeiro plano, fora de foco, presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, com premiê da Alemanha, Olaf Scholz, em monitor ao fundo
Conflito no Leste Europeu obriga Berlim a abrir novo capítulo da história nacionalFoto: Ukrainian Presidential Press Service via REUTERS

Por vezes, grandes mudanças se manifestam em coisas pequenas. Como num clip de 30 segundos, o primeiro vídeo promocional da Bundeswehr (Forças Armadas alemãs) em cinco anos, lançado no YouTube no começo de agosto. Nos primeiros 17 segundos, veem-se soldados uniformizados em situações quotidianas: brincando com os filhos, comprando jornal na banca, passeando pela cidade.

Só nos últimos 13 segundos se enfoca o aspecto action da vida militar, à maneira do filme Top Gun - Ases indomáveis, com jatos de combate realizando manobras de voo mirabolantes, navios de guerra em alto-mar, soldados descendo de helicópteros pendurados por cabos, sob o slogan "Protegendo a Alemanha".

Duas guerras e duas ditaduras no século 20 fizeram que se desenvolvesse no país uma profunda desconfiança em relação aos militares. Atualmente uniformes não fazem parte da paisagem do dia a dia. O fato de soldados serem apresentados como presença perfeitamente normal pode ser compreendido como sinal de uma virada tectônica: em consequência da guerra na Ucrânia, a Alemanha faz as pazes com as Forças Armadas – e se arma para conflitos futuros.

A palavra mágica: zeitenwende

Quem preparou o solo para tal foi o chanceler federal Olaf Scholz, três dias após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Em 27 de fevereiro, num discurso programático que despertou grande atenção, o chefe de governo social-democrata não só constatava uma zeitenwende (mudança de era ou paradigma, ponto de inflexão), mas também tirava consequências práticas: negligenciada há décadas, a Bundeswehr seria recauchutada com uma verba especial de 100 bilhões de euros para aquisições mais urgentes.

A meta da Otan, já anunciada em 2014 – em reação à anexação da Crimeia pela Rússia! –, de que os países-membros dedicassem pelo menos 2% de seu PIB para gastos militares, deverá ser mantida em caráter permanente. Assim, o orçamento armamentista alemão será o maior da Europa, e Scholz prometeu defender cada centímetro do território da Otan.

Seis meses depois, o especialista em assuntos americanos Josef Braml constata: "A palavra 'zeitenwende' colocou Washington em alerta, e o governo alemão cumpriu o que prometeu. O que deve ter agradado em especial os americanos é o fato de a Alemanha gastar grande parte da soma na companhia Lockheed Martin e comprar caças do tipo F35. Uma solução extremamente cara, e assim o país estará tecnologicamente preso por décadas e, portanto, dependente dos Estados Unidos nesse aspecto."

Tanque de guerra Leopard 2 A4
Fornecimento de armas para zonas de conflito foi tabu para Alemanha durante décadasFoto: Csaba Krizsan/dpa/picture alliance

Vacas sagradas no matadouro da realpolitik

A coalizão social-democrata, verde e liberal acabara de assumir Berlim em dezembro de 2021, tendo como ambicioso lema "Ousar mais progresso". Desde então, porém, guerra e crises obrigaram o governo a sacrificar, no matadouro da realpolitik, um rebanho inteiro de vacas sagradas dos templos das centrais partidárias.

Devido à redução do fornecimento de energia russa, ninguém menos que o verde Robert Habeck, ministro da Economia e Proteção Climática, é forçado a recolocar em funcionamento usinas a carvão desativadas – uma enorme quebra de tabu, causando altas emissões de CO2.

Possivelmente o também vice-chefe de governo terá até mesmo que prolongar a vida de usinas nucleares. Originalmente, os últimos três reatores alemães deveriam ser desligados no fim de 2022, no âmbito do abandono da energia atômica por motivos políticos – uma questão sentimental para os verdes.

Também o Partido Social-Democrata (SPD) tem tido que submeter seus membros a guinadas até pouco antes impensáveis. Num discurso no fim de junho, seu copresidente Lars Klingbeil não só formulou uma prerrogativa alemã à liderança na Europa, como admitiu abertamente: "Política de paz significa para mim também ver a força militar como um recurso legítimo da política." Duro golpe para uma legenda tradicionalmente inclinada a defender o desarmamento.

Súbito é possível exportar armas também para regiões de crise. Sobretudo os verdes antes condenavam severa e repetidamente as exportações para países como, por exemplo, a Arábia Saudita. Agora eles pressionam para que se forneçam também armamentos pesados à Ucrânia, o mais rápido possível. Nesse ponto, SPD igualmente deu uma guinada, embora não tão dramática, pois sua forte ala esquerdista segue freando esses fornecimentos.

Diante a histórica mudança de paradigma, o cientista político Volker Kronenberg diagnostica uma anulação da aritmética política usual, e, portanto, também uma chance de traçar caminhos novos. "Esse choque criou um impulso onde há muito espaço para a configuração de políticas. Tais épocas de crise são a hora e a vez do Executivo."

Prosperidade em pedestal de barro

Enquanto isso, no exterior há quem esfregue os olhos de incredulidade. Em meados de agosto, a revista britânica The Economist anunciava em sua capa "A Nova Alemanha", a ilustração mostrava uma águia, símbolo nacional, que saía do ovo exibindo os músculos.

A guerra na Ucrânia teria acordado um país autocomplacente e indulgente, analisavam os autores, torcendo por uma Alemanha "mais forte, mais corajosa e mais decidida, que assuma a liderança de uma Europa mais fortemente unida".

O politólogo Kronenberg explicita as diferentes expectativas e perspectivas dos observadores de fora: "Nos EUA ou na França, registra-se com boa vontade o que foi alcançado. Vê-se de forma positiva que Berlim reconheça as necessidades e realidades, finalmente deixando para trás essa reticência melindrosa em relação à defesa e às necessidades e imposições da política de segurança." Por outro lado, ressalva, na Europa Central e Oriental "se desejaria mais disso e talvez também mais depressa".

Sob a lupa das crises, os erros do passado se revelam com nitidez exagerada, a digitalização lenta trava a economia e a administração; a já crônica inconstância da rede ferroviária é apenas um exemplo de anos de negligência da infraestrutura. Acima de tudo, porém, fica óbvio como são de barro os pés da prosperidade alemã.

Contêineres marcados "carga para a China", com arame farpado em primeiro plano
Dependência comercial excessiva da China preocupa BerlimFoto: Justin Sullivan/Getty Images

Retrocesso inevitável da globalização?

Simplificando fortemente, o modelo econômico alemão dos últimos anos funcionava assim: com grandes volumes de energia barata da Rússia, produtos primários da China eram transformados em artigos de alta qualidade e exportados – principalmente para a China.

A potência asiática é a principal parceira comercial da Alemanha, setores econômicos inteiros dependem de seu mercado, as cadeias de suprimento de outros setores dependem dos fornecedores chineses.

Um pilar do sistema já vacila: o comércio com a Rússia foi reduzido drasticamente por diversos pacotes de sanções da União Europeia, cada vez fluem menos insumos como gás, petróleo e carvão mineral para a Alemanha, que antes da guerra na Ucrânia importava da Rússia a metade de sua demanda de gás natural.

Atualmente remaneja-se, poupa-se; o chanceler federal e o ministro da Economia buscam por todo o mundo novas fontes de energia. Política, empresariado e população antecipam com apreensão o próximo inverno – quando se constatará de forma implacável se o que se conseguiu bastará, e o que esperar da solidariedade em âmbito nacional e europeu.

O segundo pilar, o comércio com a China, ainda resiste, porém cresce o mal-estar com a dependência do mercado chinês. Por pressão dos EUA e sob o conceito de decoupling, desacoplamento, começa uma espécie de retrocesso da globalização. Formam-se novos blocos, sob insígnia chinesa ou ocidental, o que dificultará ainda mais fazer negócios com todos os lados.

Diante da abundância de crises e conflitos atuais e ameaçadores, Berlim começa a elaborar uma estratégia de segurança nacional. Um fato inédito, pois até agora o país não considerara necessário clarificar suas metas e caminhos geoestratégicos.