Existe um ditado que circula entre várias sociedades africanas que diz: "Até que os leões inventem as suas histórias, os caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça". Gosto muito desse provérbio, pois ele conta de forma simples uma premissa que muitas vezes pode passar despercebida: a história não é uma via de mão única, uma reta que nos leva ao presente. A história é emaranhado, é trança, é trama e é tessitura. E são muitas as pontas que permitem a conexão com esse tempo que já passou.
Mas esse provérbio também fala sobre enunciado. Sobre quem conta as histórias e o poder que isso representa não apenas na construção do tempo presente, mas também nos projetos de futuro, nas escolhas do que e de quem devemos lembrar.
Hojé é dia 20 de novembro de 2021. Há 326 anos Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes quilombolas da história das Américas, era assassinado. Sua morte demorou muito mais tempo do que os senhores de engenho da capitania de Pernambuco imaginavam. Na realidade, o Quilombo de Palmares se transformou num grande pesadelo para os homens que viviam da exploração do trabalho de homens e mulheres escravizados, a maior parte deles africanos. Até mesmo o rei de Portugal enviou correspondências para Zumbi, na tentativa de dissuadi-lo de ser quem era. Zumbi não cedeu aos apelos reais. O mundo que ele estava construindo com seus companheiros era outro. Ele sabia muito bem disso, e pagou um preço alto por essa ousadia. Pagou com sua própria vida.
Sua história atravessou tempo e espaço. A tradição oral garantiu que gerações de escravizados e libertos soubessem de seus feitos. E até mesmo a história oficial, aquela escrita por homens que defendiam a escravidão e a escravização de homens como Zumbi, foi obrigada a se curvar ao líder palmarino, que, mesmo de maneira rápida, foi mencionado nos tratados e livros de história escritos no período colonial e ao longo do século 19.
Todavia, há uma grande diferença entre constar nos anais da história e se tornar herói nacional. Para ser herói não basta que um leão passe a contar as histórias. É necessária uma alcateia inteira. Sendo assim, a história por trás do 20 de Novembro não é apenas a brava e heroica história de Zumbi dos Palmares e de seus companheiros e companheiras de luta. O 20 de Novembro também é resultado da luta dos movimentos negros brasileiros na disputa por uma outra narrativa da história nacional. Uma narrativa que fez da figura de Zumbi não só um ícone, mas também um lembrete de tantas histórias e trajetórias que compunham a consciência negra – e que estavam submersas nesse oceano de racismo.
Há 50 anos, no dia 20 de novembro de 1971, no Rio Grande do Sul, um dos estados mais brancos do país, alguns cidadãos negros se reuniam no Clube Náutico Marcílio Dias, uma das poucas associações negras de Porto Alegre. O Brasil vivia os anos de chumbo, numa ditadura militar que fez da democracia racial seu projeto de nação, ao mesmo tempo que vigiava atentamente todas as organizações negras do país. Mesmo assim, aqueles homens e mulheres – como outros tantos negros e negras brasileiros da época – se reuniam para ler poemas e cantar músicas compostas por artistas negros, para debater e combater o racismo. Brotava ali, um importante verso dessa nova história.
A década de 1970 foi marcada pela ampliação dos movimentos negros em todo o Brasil e teve a criação do Movimento Negro Unificado (1978) como uma de suas grandes marcas. Essa movimentação realizada por e para negros questionava a ordem vigente e propunha uma outra forma de revisitar o passado brasileiro e, portanto, uma outra forma de ser brasileiro. O 13 de Maio da Princesa Isabel não poderia ser a marca da liberdade. Mesmo porque, outras liberdades já haviam sido lutadas. Zumbi era um dos maiores lembretes disso.
O que observamos a partir daí, foi uma ação conjunta e coordenada, com o objetivo de, literalmente, mudar a história do Brasil, e trazer o protagonismo negro para a centralidade da narrativa. Um processo que foi lento, que passou por tramitações jurídicas, que causou polêmicas e muitas críticas daqueles que insistiam em enxergar o Brasil como uma espécie de paraíso racial.
Então, se hoje temos e comemoramos o Dia da Consciência Negra no Brasil, devemos agradecer não só a Zumbi e seus companheiros palmarinos, mas também aos outros milhares de homens e mulheres negros e negras que não se curvaram aos caçadores e que fizeram de suas histórias as histórias do Brasil.
*Este artigo compõe a Ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.
--
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.