A batalha de uma médica contra a microcefalia
2 de março de 2020Além das faixas coloridas no muro do Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto (Ipesq), localizado numa rua residencial de Campina Grande, na Paraíba, não há nada que sugira que mais de 150 pacientes com microcefalia foram e são atendidos no local por meio de exames, programas intensivos de fisioterapia e doações.
Às 10 horas da manhã, muitas mães estão sentadas com seus bebês numa sala de espera barulhenta. Adriana Melo, diretora do Ipesq, mostra as dependências do local e diz que é "bombardeada" com pedidos de vagas em todas as suas redes sociais. "Eles pedem vagas porque provavelmente sabem que existe aqui todo esse apoio. Não é só terapia", explica.
O Ipesq é uma organização sem fins lucrativos que já existia como centro de pesquisa em saúde infantil e materna antes de a epidemia do vírus zika eclodir no Brasil. Mas seus rumos mudaram quando Melo observou em sua clínica particular os primeiros casos de microcefalia em fetos, e finalmente descobriu através de testes de líquido amniótico que a infecção de uma mulher grávida por zika foi responsável pela malformação do bebê.
"No Ipesq, sempre tivemos a atitude de que a pesquisa não é um fim em si mesmo. A primeira pergunta que fiz foi: o que eu devo fazer com essa descoberta?", conta a médica.
Ela se colocou na posição de mulheres grávidas que ficaram totalmente paralisadas no momento do diagnóstico. "Imagina você estar grávida e não saber o que vai ser do futuro do seu filho, se ele vai viver um dia, um mês, um ano e será capaz de andar e falar? Não havia nenhuma pesquisa sobre microcefalia causada pelo vírus zika na época, então não se sabia quase nada sobre a doença."
Portanto, foi um salto para o desconhecido quando Melo decidiu tratar os pacientes também no Ipesq. Hoje, a ginecologista afirma que "o zika é um dos piores vírus que pode acometer um feto", pois ele paralisa não apenas o crescimento do cérebro e causa deficiência mental, mas também pode gerar alterações em qualquer parte do corpo onde exista nervos. Um exemplo: muitas crianças não conseguem deglutir e não têm o reflexo da tosse.
"Então não sabemos se a comida está indo para o lugar certo. A maioria não pode tomar água na forma de água, nós temos que espessá-la. Muitas crianças precisam de um tubo gástrico", explica Melo.
Também são comuns convulsões e problemas de visão, audição e no quadril. A gravidade das limitações mentais e físicas depende do momento em que a mãe foi infectada pelo vírus durante a gravidez.
No Brasil, a infecção também é uma questão social: microcefalia é particularmente comum entre crianças pobres, porque suas mães não conseguiram se proteger tão bem do mosquito Aedes aegypti, que transmite o zika, como aquelas que ficaram muito tempo em quartos com ar-condicionado e longe dos criadouros de mosquitos.
Terapia intensiva pode aumentar qualidade de vida
Para muitas famílias afetadas, o trabalho do Ipesq é uma esperança, porque o governo apoia de forma muito limitada as famílias com crianças com microcefalia. Uma quantia equivalente a um salário mínimo é transferida somente se a família tiver muito pouca ou nenhuma renda. O acesso à fisioterapia também é restrito no Sistema Único de Saúde (SUS).
"Na área de deficiência, o SUS não dá vazão a todas as crianças que têm necessidades. Já fui gestora de saúde e me angustiava o fato de que as pessoas faziam somente um dia de terapia. Como é que uma criança com danos no cérebro vai fazer fisioterapia somente uma ou duas vezes por semana?", questiona Melo.
No Ipesq, as crianças realizam diferentes tipos de fisioterapia até cinco vezes por semana. Essa intensidade é crucial, explica Romero Moreira, marido de Adriana Melo, advogado e voluntário no Ipesq, principalmente na área da administração.
"Tinha criança que não conseguia sentar. Hoje, ela senta e levanta o pescoço. Algumas até aprendem a andar", diz Moreira. De um total de 150 pacientes com microcefalia, apenas seis morreram – um número muito baixo considerando que, em alguns estados, um quarto das crianças não sobreviveu.
Na sala de terapia intensiva, Maria Alícia, de 4 anos, treina atualmente seus músculos e mobilidade com ajuda de um colete, faixas elásticas e uma fisioterapeuta. A mãe, Karine Leite, diz que sua filha fez muitos progressos. "Maria Alícia mudou muito desde que começou a fazer terapia aqui, há dois anos. Ela está mais ativa, porque antes era muito parada", conta.
Entre outras coisas, sua filha faz terapia ocupacional e fonoaudiologia no Ipesq de quarta a sexta-feira e é acompanhada por vários médicos, entre eles um neurologista. Karine Leite e sua filha moram numa pequena cidade a 400 quilômetros, portanto não é tão fácil para as duas se locomoverem três dias por semana até Campina Grande.
Além de tratamento, hospedagem
Muitas mães e crianças vêm de longe, às vezes de outros estados. Para esse problema, há uma solução desde 2018: a apenas duas ruas do instituto, o Ipesq alugou uma casa onde mães e filhos podem se hospedar.
Embora o local esteja sempre amontoado de pessoas e malas, algumas mulheres não querem mais voltar para casa, afirma Melo. "Às vezes a estrutura familiar é tão ruim que, mesmo o lugar não sendo confortável, elas se identificam, porque todas são iguais e têm o apoio de outras mães", frisa.
O dinheiro para pagar o aluguel da casa e comprar medicamentos, fraldas e equipamentos técnicos do Ipesq vem de doações e patrocínios de algumas empresas, organizações e pessoas físicas.
Os médicos e terapeutas que trabalham no instituto são financiados por bolsas de estudo concedidas por universidades e fundações. E para manter o fluxo de caixa, Adriana Melo viaja muito e dá palestras – essa é sua principal tarefa no instituto.
"O interesse internacional caiu muito"
"Não temos vontade de desistir, mas ficamos pensando como vai ser o amanhã", conta Melo, cujo trabalho já inspirou a criação de outros institutos no país. Com ajuda do Ipesq, foram lançados recentemente dois novos centros de tratamento em Belo Horizonte e Maceió.
Apenas cinco anos depois da alta incidência de microcefalia em recém-nascidos, ainda há muito a aprender sobre a doença. "Infelizmente, o interesse internacional em pesquisa diminuiu muito", reclama Melo, "porque o zika não chegou ao mundo rico, não chegou à Europa e aos Estados Unidos. Perdeu-se totalmente o interesse pelo assunto."
Para ela, é uma negligência, uma vez que o vírus zika continua causando novos casos de microcefalia em crianças. "É improvável que aconteça uma nova epidemia como a que ocorreu no passado. Mas talvez estejamos perdendo a chance de conhecer melhor esse vírus e de estar preparados para quando ele voltar", conclui.
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