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28 de maio de 1923

A 28 de maio de 1923 nasceu em Dicsöszentmárton, atual Romênia, aquele que apontaria novos caminhos para a música da segunda metade do século 20. Com emoção e humor, para além de dogmas e fórmulas eternas.

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György LigetiFoto: Schott-Archiv / Kropp 1989

A biografia e a carreira musical de György Ligeti sempre estiveram ligadas à Alemanha, das maneiras mais diversas. Em sua infância, os discos de música clássica eram o contrapeso para a onipresença da música cigana em Dicsöszentmárton. Atualmente chamada Tirnaveni, foi nesta pequena cidade da Transilvânia (desde 1920 pertencente à Romênia) que o compositor nasceu em 28 de maio de 1923, no seio de uma família judaica húngara.

A mudança para o centro cultural Kolozsvar possibilitou-lhe frequentar concertos e óperas. De início, Ligeti desejava ser tanto músico como cientista. Porém a presença nazista na Romênia e as consequentes medidas antissemitas decidiram o impasse por ele: o curso de Física só oferecia uma vaga para judeus, e em 1941 ela foi concedida a outro aluno. Porém a paixão pela ciência permaneceu: quase 40 anos mais tarde o compositor realizaria obras com base na teoria do caos, recursividade, fractais e outros conceitos matemáticos.

Em 1944, próximo ao final da guerra, Ligeti teve que servir ao Exército. Os demais membros da família foram enviados a campos de concentração. O pai e o irmão – violinista e violista de talento – morreram em Bergen-Belsen e Mauthausen, respectivamente, porém a mãe de Ligeti conseguiu sobreviver a Auschwitz.

Os anos da guerra marcaram indelevelmente a personalidade do compositor: ele, que se definia como uma pessoa afável, dizia guardar dentro de si um ódio imenso. Um sentimento que se multiplicou sob a ditadura comunista húngara, na década de 50, e que se expressou na agressividade de certas obras, como o Requiem, de 1965.

O exílio

Sob o governo de András Hegedüs, a Hungria passou pela "re-stalinização", sob o signo da coletivização compulsória e do terror da polícia secreta. Nesse ínterim, o compositor lecionou Teoria Musical no Conservatório Franz Lizst, de Budapeste. Como acontecera com os nazistas, o regime comunista condenou a música moderna. Para Ligeti se tornar persona non grata para o partido, bastou ele apresentar uma peça de Igor Stravinsky a seus alunos.

O músico relembrava ter escutado no rádio –às escondidas – a obra eletrônica Gesang der Jünglingen, de Karlheinz Stockhausen. Esta música lhe fez vislumbrar o mundo de possibilidades musicais para além da Cortina de Ferro, confirmando o doloroso exílio em que foi forçado a viver. A sensação de sufocação, tanto intelectual como pessoal, tornou-se insuportável após o fracasso da revolução antissoviética de 1956. Ligeti fugiu para a Áustria.

Voz crítica na torre de marfim

Pouco depois, ele foi convidado por Stockhausen e Herbert Eimert a realizar três peças no Estúdio de Música Eletrônica da Rádio WDR, em Colônia. Esse contato direto com os sons eletrônicos foram a inspiração para sua primeira grande peça orquestral, Atmosphères. Ela seria seu passaporte para o panteão da música europeia da segunda metade do século 20, ao lado de Pierre Boulez, Luciano Berio, Luigi Nono e mais alguns poucos eleitos.

Durante anos, György Ligeti foi presença marcante nos cursos de música contemporânea de Darmstadt, além de lecionar em Essen, Berlim e, por último, Hamburgo. Uma característica essencial de Ligeti: o fato de pertencer ao crème de la crème da música nova nunca o levou a sacrificar seu olhar crítico sobre as atividades da "corporação".

Enquanto seus colegas seguiram com afã religioso dogmas como o do serialismo, ele procurava sua estética a cada nova obra: longe de meramente seguir uma fórmula mais ou menos bem-sucedida, cada peça é um universo único, irreprodutível. Em geral avesso a dogmas, Ligeti foi um judeu que não via o menor problema em haver escrito um réquiem: "Não sou judeu nem cristão. Mas também não sou ateu. Existem outras possibilidades".

Filigranas musicais e humor

Ausschnitt aus einer Ligeti- Partitur
Trecho de uma partitura de LigetiFoto: Schott Musik International Mainz

Como definir a música de Ligeti? Assim como sua biografia e personalidade, ela se caracteriza por paradoxos, metamorfoses, guinadas bruscas e pistas falsas. Enquanto ainda na Hungria, ele compunha num estilo próximo ao nacionalismo construtivista, cerebral, de Béla Bartók.

Suas primeiras obras de peso no Ocidente foram de uma beleza sonora iridescente, inspirada nas possibilidades ilimitadas da música eletrônica e alcançada através da técnica da "micropolifonia", que Ligeti derivou do contraponto medieval: os instrumentos da orquestra tocam simultaneamente centenas de melodias semelhantes, que produzem um paradoxal efeito de agitação estática.

Em seguida, o compositor explorou a simultaneidade de estruturas rítmicas independentes. A consequência última dessa "técnica de reticulado" foi o Poème symphonique, para 100 metrônomos, cada um num andamento diferente. Nascida de um certo enfado com a indústria da música erudita e não sem uma boa dose de ironia, a peça faz refletir sobre o que é a interpretação, sobre a situação de concerto em si.

Essa veia satírica seria futuramente desenvolvida nas peças vocais Aventures e Nouvelles aventures – minidramas musicais, sem enredo explícito e numa língua imaginária –, e na apocalíptica Le Grand Macabre – sua única ópera, que numa cena inclui a música étnica de um país que jamais existiu.

Janela sobre a eternidade

O compositor faleceu em 12 de junho de 2006. Seu precário estado de saúde já o impedira de receber pessoalmente o Prêmio da Música de Frankfurt, no ano anterior.

Um dos enigmas do homem György Ligeti foi sua capacidade de evoluir sempre, porém mantendo-se fiel às suas paixões originais. Pois o interesse por mundos artificiais já se manifestara na infância, quando ele inventou Kylwiria, um reino imaginário, com geografia, língua e história próprias.

Ainda adolescente, a caminho da aula de piano, Ligeti imaginava uma música estática, mas em movimento perene. Um ideal que ele reencontraria nas obras medievais e que perseguiria de diversas formas em suas próprias composições.

Certa vez, Ligeti comparou a música a alguém que contempla o mar através de uma janela. O que o compositor faz é abrir essa janela. Quando ela é fechada, a música continua lá. Uma nobre utopia, da qual esse compositor pan-europeu conseguiu se aproximar como ninguém.

Autor. Augusto Valente