"Um labirinto sem saída", diz irmã sobre caso Marielle
14 de março de 2020O interesse de Anielle Franco pela política começou cedo. Antes de completar 17 anos, ela ganhou uma bolsa para estudar e jogar voleibol numa universidade nos Estados Unidos. Era uma das HBCUs (Historically black colleges and universities), instituições de ensino criadas para o público afro-americano antes da Lei dos Direitos Civis de 1964.
"Foi necessário me impor, entender meu cabelo, meu nariz, meu corpo", diz. A militância passou a ocupar maior espaço em sua vida, mas nunca na intensidade dos últimos dois anos, após o assassinato da vereadora Marielle Franco, sua irmã. "A gente tem um legado inteiro para defender e honrar."
Anielle, de 35 anos, é professora numa escola particular do Rio de Janeiro. O ofício passou a dividir espaço com a função de diretora do Instituto Marielle Franco, criado pela família da vereadora para fortalecer sua memória e legado, além de reivindicar justiça sobre o caso.
Nos dois anos que sucederam o crime, completados neste sábado (14/03), a investigação teve maior repercussão pelas controvérsias do que seus avanços. Em meio ao luto, a família teve que lidar com suspeitas de interferência nas investigações, formalizadas em denúncia feita pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge em setembro de 2019.
Na ocasião, ela acusou o conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE-RJ) Domingos Brazão de atuar para obstruir as investigações do assassinato da vereadora e do motorista Anderson Gomes. Dodge solicitou, ainda, a federalização das investigações, deslocando o caso da Polícia Civil do Rio para a Polícia Federal.
"É como se a gente estivesse num labirinto sem saída", desabafa Anielle. "Se ela sabia disso, por que não falou antes? Enquanto familiar, a gente fica entre a cruz e a espada. Ao mesmo tempo que a gente tenta acreditar que algo está sendo feito, pode ter tanta corrupção envolvida nessa investigação, que às vezes bate um desânimo disso tudo."
O debate sobre a possível federalização das investigações começou logo após o crime que vitimou Marielle e seu motorista – e segue indefinido. O pedido de Dodge entrou na pauta do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e deve ser levado a julgamento no próximo dia 31 pela ministra Laurita Vaz. O tema será analisado pela Terceira Seção, responsável pelos processos penais no STJ.
A transferência do caso é entendida na corte como uma medida excepcional. Além disso, dois acusados de executarem o crime, os ex-policiais militares Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa, foram presos. Portanto, a tendência é que o requerimento seja negado.
Em janeiro deste ano, o ministro da Justiça, Sergio Moro, reviu sua posição favorável à transferência das investigações e passou a defender que permaneçam no Rio. Moro atribuiu a mudança ao desejo manifestado pela família de que o caso fique no Rio.
Os familiares, por sua vez, dizem não confiar no ministro para investigar os crimes, afirmando que seu interesse somente surgiu após a menção ao presidente Jair Bolsonaro no inquérito. "Acreditamos que Sergio Moro contribuirá muito mais se ele permanecer afastado das apurações", dizia uma nota da família em novembro passado.
"Moro é uma figura ímpar. Era previsível que ele ficasse a favor da federalização. Ele nunca nos recebeu, nunca procurou a família para falar sobre nada, e, de repente, disse que era a favor da federalização. Por quê? Eu vejo todos muito confusos: a investigação, o ministro e o presidente. Na posição de chefe de Estado, não era para ficar desmerecendo, fazendo piada, como ele faz. Não consigo acreditar em nada do que eles falam", diz a irmã da vereadora.
"Quanto mais revolta me dá, mais quero fazer"
Apesar do acúmulo de frustrações, Anielle afirma que perder as esperanças não é uma possibilidade. Ela traz tatuada no ombro esquerdo a medalha de São Bento e, nas costas, a imagem de São Jorge. A família é católica e vai junta à missa aos domingos. "A nossa fé moveu muita coisa até aqui. Teria sido diferente se eu não tivesse espiritualmente fortalecida naquele momento e em todos os que vieram depois", acredita.
Segundo ela, o maior desafio é ter compaixão pelos que se dedicam a caluniar a memória de sua irmã nas redes. Não falta quem diga que a vereadora "enche o saco".
"Dói muito. Mas quanto mais revolta me dá, mais eu quero fazer. Eu não consigo ver uma coisa atacando a memória, índole ou caráter dela e ficar quieta. Tenho muita dificuldade com isso, muita", confessa. "Ao mesmo tempo que fere o fato de as pessoas não conseguirem enxergar que não precisam julgar uma morte pela posição político-partidária, isso mostra o quão importante é nosso trabalho no instituto, de tentar dialogar com elas."
Embora a abertura ao diálogo seja cada vez menor no contexto brasileiro de polarização, ela acredita haver brechas. Em 1º de março, a inauguração da Casa Marielle Franco, na zona portuária do Rio, atraiu 7 mil pessoas, segundo o instituto. Entre os muitos elogios à iniciativa enviados pelas redes, havia mensagens de pessoas identificadas com partidos e candidatos com pensamentos divergentes de Marielle. "Entendo que não é uma tarefa fácil, mas necessária. Eu não vou desistir disso", garante.
O espaço em homenagem à vereadora se localiza numa região de enorme importância para a memória da diáspora africana no Brasil. A 500 metros dali fica o Cais do Valongo, onde cerca de 1 milhão de africanos escravizados desembarcaram — 10% do total de 10 milhões que chegaram ao continente americano. Por ser o único vestígio desse afluxo nas Américas, o Valongo foi declarado Patrimônio Material da Humanidade pela Unesco em 2017.
Representatividade
Na mobilização para manter viva a memória de Marielle, o debate sobre a representatividade racial é o ponto mais sensível. Houve intensa discussão nas redes sociais nos últimos dias após o anúncio de que a roteirista Antonia Pellegrino convidou o cineasta José Padilha para dirigir uma série desenvolvida por ela sobre a vereadora, com estreia prevista para 2021. Ela é esposa do deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), com quem Marielle trabalhou como assessora parlamentar por 16 anos.
O fato de os dois serem brancos gerou uma série de questionamentos. Anielle conta que a família foi procurada pela roteirista, com a ideia já formatada. "Eu entendo que ia acontecer com ou sem a gente. Se eles conseguirem, de fato, colocar pessoas negras ali, vou ficar muito mais contente, pois irá permitir que contem suas narrativas. A bola está na mão deles. Não começaram bem, mas têm a chance de terminar diferente", avalia. "Isso é algo que as pessoas brancas têm por costume fazer: elas decidem, falam e acabam fazendo porque têm acessos que a gente não tem."
Desde a estadia de Anielle nos EUA, que se estendeu por 12 anos, inquietações desse tipo – como a falta de representatividade racial, mas também feminina – costumavam ser tema de conversa entre ela e sua irmã quando estavam a sós. Por vezes, Marielle se via incomodada por ser a única mulher em espaços de decisão de seu partido. Além de ter perdido o porto seguro, a irmã caçula ficou com a responsabilidade de cuidar dos pais e levar adiante sua luta.
"Eu sempre acompanhava minha irmã, ajudava a escrever, estava junto nos debates. Ela me formou como mulher", resume. Questionada se, com tanta energia mobilizada para a militância, ela pensa em disputar um cargo eletivo, Anielle responde: "Não sei futuramente, mas hoje não. Para 2020, fora de cogitação total."
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