Uganda e RDC, estradas como reparação de guerra?
2 de setembro de 2023No final de novembro de 2021, quando o exército do Uganda marchou até à fronteira da República Democrática do Congo (RDC), os congoleses ficaram estupefactos. Entre os equipamentos de guerra, chegaram também escavadoras, tratores e... máquinas de asfalto.
Houve vivas e palmas, porque vê-las é uma raridade na zona de guerra do leste Congo, onde a cena normal são as suas estradas lamacentas e cheias de buracos. No entanto, apenas alguns quilómetros depois da fronteira, toda a caravana parou.
A única ponte de madeira com buracos sobre o rio Semliki era intransitável para veículos pesados. Assim, sob a proteção dos soldados, as máquinas de construção de estradas avançaram para a reparar.
Segunda Guerra do Congo
Há quase 25 anos, as tropas ugandesas já tinham atravessado a mesma fronteira. Naquela altura, durante a Segunda Guerra do Congo, de 1998 a 2003, tinham invadido o país sem autorização para pilhar matérias-primas como o ouro e os diamantes. Quando os ugandeses partiram, ao fim de cinco anos, não restava grande coisa das estradas e das pontes.
Desta vez, os soldados do Uganda estão a chegar a convite da RDC. O objetivo declarado das forças armadas é esmagar os rebeldes islamitas ugandeses das Forças Democráticas Aliadas (ADF), que estão entrincheirados na intransponível zona fronteiriça desde 2007.
E, desta vez, em vez de destruir as infraestruturas da RDC, os ugandeses querem reconstruí-las. "A reparação das estradas é uma parte essencial da operação militar", confirma à DW um coronel do exército ugandês envolvido na operação.
Segurança
A segurança só pode ser garantida nas zonas de guerra do leste da RDC através de melhores estradas, explica Kristof Titeca, analista político da Universidade de Antuérpia. "Os bloqueios de estradas são uma importante fonte de rendimento para as milícias na RDC", diz.
Bloqueios são normalmente erguidos em pontes degradadas, ou em buracos profundos, onde os camiões só podem circular lentamente. Com melhores estradas, seria possível cortar o dinheiro às milícias. Ao mesmo tempo, permitiria "uma intervenção efectiva das forças armadas em zonas de difícil acesso", diz Titeca.
Melhores estradas na RDC também são benéficas para a economia do Uganda, explica Susan Kataike, porta-voz do Ministério dos Transportes ugandês.
É que a maior parte dos camiões que circula nas estradas esburacadas da RDC são agora de empresas de logística ugandesas, que exportam frequentemente para o Uganda produtos perecíveis, como os plátanos, diz Kataike.
"Não podemos fazer negócio se não estivermos seguros". Melhores estradas também garantem, diz Kataike, que os plátanos não cheguem ao Uganda demasiado maduros.
Velhos inimigos, novos amigos?
Em abril de 2022, a RDC aderiu à Comunidade da África Oriental (EAC). O país é uma potência económica na região: por um lado, é um gigantesco mercado de vendas, uma vez que quase nada é produzido no país. Por outro lado, é rico em matérias-primas - mas que têm de passar pelos países vizinhos para chegar ao mercado mundial.
Existem também reservas de petróleo ao longo da fronteira com o Uganda, que, se o plano resultar, serão bombeadas para o mercado mundial através do gasoduto da África Oriental, atualmente em construção. Os estados da EAC esperam que tudo isto lhes traga vantagens económicas.
Mas há um obstáculo: o enorme tamanho da RDC, quase como a Europa Ocidental, e que tem uma rede rodoviária asfaltada de apenas cerca de 3.000 quilómetros - e é isso o que impede o arranque do comércio.
É por isso que Uganda prometeu ajudar a RDC na construção de estradas. Por último, mas não menos importante, o Governo de Kampala espera que o projeto "estratégico" contribua para duplicar as suas próprias exportações para a RDC.
Investigação
A nossa investigação revelou agora que o projeto de construção da estrada faz parte de um projeto mais vasto.
A DW tem o documento de acordo de parceria, com data de início em novembro de 2020, em que a empresa ugandesa de construção de estradas Dott Services, que deverá alcatroar as estradas no leste da RDC, e a empresa mineira estatal congolesa SAKIMA comprometem-se a criar uma empresa comum denominada "Punia Kasese Mining", ou abreviadamente PKM, na qual a Dott Services deterá 70% das acções.
Isto dá à empresa ugandesa acesso a lucrativas concessões mineiras na província congolesa de Maniema, mas também em Ituri, mesmo na fronteira com o Uganda, ou seja, onde as tropas ugandesas se bateram durante a Segunda Guerra do Congo, terras ricas em estanho e o tântalo.
Como mostra o documento, a empresa ugandesa Dott Services não só está a fornecer novas máquinas de mineração para este fim, como também está a asfaltar o aeródromo local nas áreas de mineração.
Paralelamente às novas estradas, serão construídas linhas de alta tensão, a fim de utilizar a eletricidade ugandesa para impulsionar a exploração mineira industrial no leste da RDC. Enquanto isso, em casa, os próprios ugandeses queixam-se da falta de fornecimento de energia.
325 milhões de dólares de indemnização
O facto de as infraestruturas da RDC estarem a ser melhoradas com o dinheiro dos impostos do Uganda levantou questões dos dois lados da fronteira. Em agosto, o Governo do Uganda voltou a pedir ao Banco Mundial um empréstimo de mais de 500 milhões de euros para reparar as estradas degradadas da capital, Kampala.
O parlamento do Uganda debateu esta questão durante muito tempo; afinal, a dívida nacional é demasiado elevada. Então, porque é que o Uganda está a investir o dinheiro dos seus impostos nas estradas da RDC e não nas suas?
Os rumores de um "acordo controverso" circulam por todo o lado. A DW investigou-os.
O pano de fundo é o seguinte: o Uganda deve dinheiro à RDC - muito dinheiro. Em 2005, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) de Haia, que resolve os litígios entre Estados, já tinha obrigado o Uganda a pagar uma indemnização a Kinshasa pelo ouro, diamantes e madeiras tropicais saqueados durante a Segunda Guerra do Congo.
O montante exato da compensação deveria ser negociado bilateralmente. O governo congolês exigiu inicialmente mais de dez mil milhões de dólares. O Uganda argumentou que uma soma tão elevada arruinaria o país e recusou. Por conseguinte, a RDC voltou a recorrer a Haia em 2015.
Em fevereiro de 2022, o tribunal fixou um novo montante de compensação de 325 milhões de dólares - o mais elevado da história da justiça internacional.
"Prestações"
No entanto, para evitar a falência do orçamento nacional do Uganda, o tribunal estipulou que o montante seria pago em cinco prestações anuais de 65 milhões de dólares cada. Este montante inclui: 225 milhões de dólares para danos pessoais, 40 milhões de dólares para danos materiais e 60 milhões de dólares para os recursos saqueados.
Esta primeira prestação do Uganda corresponde agora aproximadamente à parte que está prevista como contribuição congolesa para o projeto comum de construção de estradas. E este montante total de indemnização é quase equivalente ao custo total das estradas da RDC. Tudo coincidência?
Neste contexto, o Daily Monitor do Uganda dá conta de um acordo secreto segundo o qual o dinheiro da indemnização seria investido na construção de estradas. Segundo o Daily Monitor, este acordo foi mediado por Caleb Akandwanaho, conhecido por Salim Saleh, irmão do Presidente do Uganda, Yoweri Museveni.
De acordo com um relatório dos investigadores da ONU, foi ele quem comandou a pilhagem em grande escala das tropas ugandesas enquanto general na Segunda Guerra do Congo. Agora, alegadamente, terá assegurado que os pagamentos de indemnizações beneficiem, mais uma vez, o seu próprio país?
O Uganda transferiu a primeira prestação para Kinshasa na data acordada de 1 de setembro de 2022. A ministra da Justiça da RDC, Rose Mutombo, confirmou que o dinheiro foi depositado numa conta do ministério e que deverá beneficiar as vítimas da guerra a longo prazo.
Na RDC, há muito que se discute um fundo para as vítimas que promete benefícios individuais. No entanto, até à data, nada foi pago. Na sua decisão, o TIJ de Haia "encoraja" as autoridades congolesas a investirem o dinheiro em projectos que beneficiem as comunidades afectadas "como um todo". Por exemplo, em infraestruturas.
Projectos rodoviários arriscados numa zona de guerra
A empresa Dott Services, que vai agora ser utilizada na RDC, está sediada numa das muitas colinas da capital do Uganda, Kampala. É a maior empresa de construção de estradas do Uganda e já pavimentou estradas na Tanzânia e no Sudão do Sul. No entanto, o contrato na RDC é o mais caro e arriscado até agora, admite abertamente o diretor da empresa.
O diretor negou uma entrevista oficial, mas disse que está disposto a dar informações de base para esclarecer os rumores. Os meios de comunicação social do Uganda especulam sobre a forma como a empresa conseguiu o contrato no valor total de 335 milhões de dólares. Há rumores de corrupção sobre as ligações à família presidencial do Uganda.
Tanto a Dott Services como o Ministério dos Transportes do Uganda confirmaram agora à DW: A firma foi a única empresa que passou por todo o processo de concurso durante a pandemia do coronavírus em novembro de 2020, quando houve um confinamento radical e a economia estava em baixo. Simplesmente não havia concorrência.
De acordo com o contrato assinado com o Uganda e a RDC, a Dott Services irá agora melhorar 1.200 quilómetros de estradas ao longo de três importantes rotas comerciais transfronteiriças. Os trabalhos de construção serão efectuados em duas fases. Na primeira fase, as estradas serão niveladas e melhoradas para quatro faixas de rodagem e, na segunda fase, será adicionada a camada de asfalto.
Cooperação
Os dois países concordaram em contribuir cada um com 20% dos custos totais, que serão utilizados para pagar a primeira fase. A segunda fase será financiada pela Dott Services através de empréstimos, cujos custos serão recuperados a longo prazo através de um sistema de portagens. Noutras palavras, a utilização da estrada será sujeita a uma taxa.
A empresa admite à DW que os custos totais aumentaram para 500 milhões de dólares e que, provavelmente, continuarão a aumentar. A razão: atrasos em certos troços da estrada. O troço de cerca de 100 quilómetros entre a cidade fronteiriça de Bunagana e a capital da província de Goma atravessa a zona de guerra.
Além disso, poucos dias depois de a Dott Services ter colocado uma dúzia de novas máquinas de construção no posto fronteiriço, em junho de 2022, os rebeldes do M23 tomaram a área. A fronteira - e, por conseguinte, o mais importante centro de comércio entre o Uganda e a RDC - tem estado oficialmente encerrada desde então. Até hoje, os tratores estacionados no lado ugandês da barreira de impacto permanecem imóveis, aumentando diariamente os custos.
A Dott Services confirma que recebeu do Ministério dos Transportes do Uganda, em outubro de 2021, cerca de 66 milhões de dólares americanos para a para a primeira fase de construção. O Ministério das Infraestruturas da RDC pagou o mesmo montante a partir do seu próprio orçamento.Por outras palavras, não é exatamente o dinheiro que o Uganda transferiu para o Ministério da Justiça congolês como compensação.
Compensação
Quando questionado sobre se esta prestação é considerada parte do montante da indemnização, o Ministério dos Transportes do Uganda afirma explicitamente que "este é um acordo diferente, não tem nada a ver com indemnização", diz o porta-voz Kataike.
No entanto, quando questionado pela DW, o Ministério das Finanças do Uganda sublinha que as "modalidades" do pagamento das indemnizações ainda estão a ser negociadas. Afinal, o orçamento nacional da RDC recebe 60 milhões de dólares de indemnização do Uganda e gasta 65 milhões de dólares em estradas, pelo que a contribuição própria real para o orçamento da RDC é pequena.
A segunda prestação do montante fixado pelo TIJ deverá ser paga no início de setembro. "Vamos cumprir as nossas obrigações", confirma Jim Mugunga, porta-voz do Ministério das Finanças, à DW. No contexto das "novas boas relações", o Uganda espera que os congoleses estejam dispostos a negociar o "método de pagamento". Por outras palavras, o Uganda espera que as infraestruturas reparadas sejam consideradas parte da indemnização.
Correção: Uma versão anterior deste artigo escreveu incorretamente o nome de Susan Kataike. A DW pede desculpas pelo erro.