Sociólogo critica processo negocial em Moçambique
28 de setembro de 2016Esta terça-feira (27.09), em Maputo, os mediadores internacionais nas negociações de paz apresentaram às delegações do Governo moçambicano e da RENAMO uma proposta sobre a exigência do maior partido de oposição de governar em seis províncias onde reivindica vitória eleitoral. Após mais um encontro da comissão mista, o coordenador dos mediadores, Mario Raffaelli, não adiantou detalhes sobre a proposta, afirmando apenas que as partes "vão reflectir”. Raffaelli acrescentou que alcançar um consenso sobre o ponto de agenda da nomeação dos governadores da RENAMO pode facilitar o processo de descentralização.
Após quase 20 rondas negociais, ainda não há acordo à vista em Moçambique. As delegações do Governo e da RENAMO continuam a debater os quatro pontos da agenda e, até agora, não ultrapassaram as divergências. Segundo o coordenador dos mediadores, a descentralização do poder – exigida pela RENAMO – e o cessar-fogo – exigido pelo Governo – são os principais pontos que devem ser resolvidos para devolver a paz ao país. No entanto, Raffaelli considera que a "falta de confiança entre as partes” é a maior dificuldade na procura de consenso.
Uma afirmação que "não é de todo interessante quando vem do mediador principal”, considera Elísio Macamo, investigador na Universidade de Basileia, na Suíça. Em entrevista à DW África, o sociólogo moçambicano admite que a desconfiança é um problema nas negociações de paz em Moçambique, mas aponta críticas ao modo como o processo está a ser conduzido, podendo levar "a uma espécie de Acordo de Roma 2”.
DW África: A desconfiança entre as partes é a principal dificuldade nas negociações de paz em Moçambique?
Elísio Macamo (EM): São partes em conflito. É natural que não haja confiança. Posso compreender que isto seja um problema, mas, ao mesmo tempo, sem querer tirar nenhum mérito ao mediador, acho que Mario Raffaelli já deveria saber desde o início que este iria ser o maior problema. Todo o processo negocial tem a ver com a construção de bases de confiança para que os assuntos sejam abordados. Não me parece que a afirmação seja de todo interessante, tendo em conta que vem do mediador principal.
DW África: Como podem ser construídas estas bases de que fala? Como ultrapassar a desconfiança entre as partes?
EM: Esse é o grande problema. Eu, pessoalmente, tenho muitas dificuldades em relação a este processo. Tudo parece estar reduzido a uma questão de acomodação de interesses da RENAMO e da FRELIMO que, em princípio, deveriam ser os interesses do Governo e da sociedade moçambicana. E acho que este é um mau ponto de partida para a resolução dos problemas que temos em Moçambique. Não se trata de acomodar nenhum interesse, trata-se de encontrar uma forma de estar no país que permita que sejamos capazes de resolver os nossos problemas sem violência e sem intervenção desta gente toda que, felizmente, está sempre disposta a ajudar-nos.
Por outro lado, este processo devia incluir mais pessoas: os outros partidos políticos e as organizações da sociedade civil. Todos deviam estar na mesa de negociações a debater a forma como Moçambique deve ser estruturado politicamente para que saibamos resolver estes problemas. O que se está a fazer agora é uma espécie de ‘Acordo de Roma 2'. E os problemas que temos hoje são o resultado direto do falhanço do primeiro Acordo de Roma. Não acho que uma segunda versão seja capaz de resolver os problemas de Moçambique. Isto é também uma coisa que os mediadores deveriam saber. Acho muito estranho, não parece que eles tenham consciência disso.
DW África: O que é que falhou no processo de reconciliação em Moçambique?
EM: Falhou muita coisa. É verdade que muita coisa também deu certo, porque tivemos estabilidade política durante muitos anos, mas falhou o conjunto de alicerces sobre o qual tudo assentou. Primeiro, a grande mentira segundo a qual a RENAMO teria lutado pela democracia. Os problemas da RENAMO revelam claramente que a democracia nunca foi um assunto para este partido. Nós trabalhamos com esta ficção durante muito tempo e não fomos capazes de encontrar respostas para as dificuldades da RENAMO em transformar-se num partido realmente democrático, como era o seu desiderato – se quisermos ser generosos a este respeito.
A outra mentira veio da parte da FRELIMO. Está cada vez mais claro que o Acordo de Roma, para a FRELIMO, não foi necessariamente para aceitar introduzir uma verdadeira democracia no país. Foi para a FRELIMO voltar a ter um mínimo de condições que lhe permitissem continuar a pensar que era o único e legítimo representante do povo moçambicano. Essas duas grandes mentiras comprometeram em grande medida o Acordo de Roma.
DW África: Acredita que as negociações atuais levarão a um acordo estável?
EM: As negociações podem levar a um acordo. Se vão levar a um acordo estável? Isso vai depender de muitas coisas. Dependerá da própria evolução no interior dos principais partidos políticos, mas também duma certa mudança de atitude no próprio país, sobretudo, no seio da sociedade civil.
Parece-me que a sociedade civil desempenha um papel extremamente problemático. Há uma grande incapacidade de fazer uma distinção clara entre quem viola a Constituição e, por causa disso, retira legitimidade às suas reivindicações – estou a falar da RENAMO – e os erros normais que qualquer Governo, em qualquer país, comete – falo, por exemplo, das famosas ‘dívidas ocultas'. Estas duas coisas não podem ser comparadas, mas fazem-se manifestações no país em que os dois assuntos são misturados. Isto revela uma grande imaturidade por parte de quem promove estes protestos. Enquanto tivermos pessoas assim na esfera pública vai ser muito difícil ter um ambiente cívico capaz de sustentar um acordo estável em Moçambique.