Sentença de Rafael Marques teria sido outra com JES no poder
6 de julho de 2018Foi uma leitura de sentença demorada – entre duas e três horas - mas, frisam os analistas ouvidos pela DW África, não deixou espaço para qualquer dúvida ou especulação.
Em entrevista à DW África, David Mendes, secretário para a litigação e formação da Associação angolana Mãos Livres, não se mostrou surpreso com o desfecho deste processo. O também advogado sénior disse ter acompanhado de perto as alegações e que "após a a aparição do ex-procurador geral João Maria de Sousa em tribunal e das respostas que deu", estava convicto de que ambos os jornalistas seriam ilibados.
Ainda assim, David Mendes enalteceu a "argumentação" da juíza Josina Ferreira Falcão. Segundo este advogado, "a juíza levou duas horas de argumentação da sua sentença, o que quer dizer que preferiu sair do marco daquilo que se podia dizer ter sido decicido por conveniência ou pressão. Pela primeira vez, vi uma argumentação de quase duas horas extremamente fundamentada, de tudo o que ela levou para os autos".
Justiça e política de "mãos dadas”
David Mendes e também Alexandre Solembe, presidente do Instituto de Comunicação Social da África Austral em Angola - o MISA -, não têm dúvidas de que a sentença poderia ter sido outra se José Eduardo dos Santos, ex Presidente de Angola, estivesse ainda no poder. David Mendes afirma mesmo que a associação que representa está convicta de que, se assim fosse, os dois jornalistas teriam mesmo sido condenados.
Alexandre Solembe vai mais longe e diz que o "direito e a política não são tão facilmente dissociáveis", facto que "deve ter contribuido muito [para a ilibação dos jornalistas], pois [se a parte política quisesse] também teria a capacidade de forjar uma sentença e convencer a sociedade de que a decisão foi bem tomada", embora, acrescenta o jornalista, existam provas de "que Rafael Marques tem feito um trabalho de jornalismo investigativo puro sem qualquer intenção de difamar".
Alexandre Solembe afirma ainda que Rafael Marques cumpriu sempre "o A,B,C do jornalismo investigativo", e prova disso foi ter endereçado cartas ao "ofendido", o ex-preocurador geral, "colocando-lhe questões para lhe conferir o direito de resposta". Argumentos que, diz o presidente do MISA-Angola, fizeram com que "o Tribunal não tivesse hipótese de produzir uma sentença diferente da absolvição".
O jornalista nota ainda que "um servidor público tem que estar preparado para a crítica, porque se não quer ser criticado deve ir tratar dos negócios privados". Uma apreciação, diz, que ficou ficou "também refletida na sentença".
Ao contrário de David Mendes, Alexandre Solembe confessa que a sentença o "surpreendeu pela positiva, embora estivesse preparado para o pior", pois nota que esta foi "a primeira vez que o Tribunal Provincial de Luanda abolveu Rafael Marques. Das vezes passadas ele foi condenado, embora tivesse pena suspensa".
De "ofendido" a réu?
Para este jornalista, "querendo", a Procuradoria Geral da República angolana pode utilizar o trabalho de investigação feito e publicado no Maka Angola por Rafael Marques, e levar o ex-procurador geral da República, João Maria de Sousa, "ao banco dos réus". "Quando isso acontecer, podemos dizer que sim a justiça está a mudar, está a fazer o seu trabalho, e é isso que os angolanos mais esperam", afirma.
Já o advogado David Mendes chama a atenção para esta questão da responsabilização do ex-procurador geral. "Embora o Rafael [Marques] tenha abordado a questão da corrupção, há uma coisa que não é clara. A corrupção exige sempre dar algo em troca, uma favor para que se tenha uma decisão, e segundo o que consta nos autos não houve troca de favores", explica.
Alexandre Solembe conclui, afirmando que, mais uma vez, o que se segue, irá colocar "à prova a boa vontade de João Lourenço na direção política do país. Portanto, só o tempo dirá e aí poderemos julgar quem efetivamente é João Lourenço neste sistema todo".
Processo
O julgamento dos jornalistas angolanos teve início em março deste ano, no Tribunal de Luanda. Rafael Marques e Mariano Brás estavam acusados do crime de "injúrias e ultraje ao órgão de soberania". Em causa estava uma notícia de novembro de 2016, divulgada no portal de investigação jornalística "Maka Angola”, do jornalista Rafael Marques, com o título "Procurador-geral da República envolvido em corrupção".
O artigo denunciava o negócio alegadamente ilícito realizado por João Maria de Sousa, ex-Procurador-Geral da República de Angola, e que envolvia a aquisição de um terreno de três hectares em Porto Amboim, província angolana do Cuanza Sul, para construção de condomínio residencial.
A notícia foi posteriormente retomada por Mariano Brás para a sua publicação semanal "O Crime", o que motivou João Maria de Sousa a acusar os jornalistas de crimes de injúria e ultraje ao órgão de soberania.
A acusação foi rebatida pelos advogados de defesa de Mariano Brás, Salvador Freire, e de Rafael Marques, Horácio Junjuvile, nas respetivas alegações, alegando que foram citadas as fontes da informação, entendendo por isso que a sua intenção de informar não poderia ser interpretada como um crime.