Rádio tem sido "balão de oxigénio" para atores moçambicanos
24 de dezembro de 2020Em tempos de crise, o que têm feito os atores que há mais de uma década dão voz às radionovelas do Learning by Ear - Aprender de Ouvido? Foi o que procurou saber a DW, que devido à pandemia de Covid-19 se viu este ano impedida de gravar os programas educativos em Maputo, como já era habitual há mais de uma década.
"O teatro de rádio tem sido, de facto, um balão de oxigénio", assegura Abdil Juma, que este ano trabalhou na produção de uma radionovela sobre a Covid-19. "Cada episódio retratava as formas de prevenção do coronavírus e ao mesmo tempo o que as pessoas vão dizendo cá fora, que isto não é nada ou que só apanha as pessoas mais ricas. Tentamos satirizar um bocadinho isto, mas sempre com uma tónica de educação cívica", conta o veterano da representação em Moçambique e uma das vozes mais conhecidas do Learning by Ear (LbE).
"No teatro, é complicado fazer 'lives' como fazem na música. Por isso, temos optado mais pela vertente da rádio", confirma Jorge Vaz, ator do Mutumbela Gogo, o grupo de teatro mais antigo de Moçambique.
"Temos feito peças radiofónicas, alguns trabalhos de sensibilização por causa da pandemia e trabalhos encomendados por algumas organizações tanto governamentais como privadas. E a vida vai andando", conta em entrevista à DW.
Atores reinventam-se
"A cultura é uma das áreas mais afetadas pela pandemia. E nós, os atores, temos de nos reinventar", explica Jorge Vaz do Teatro Avenida, em Maputo. "Os atores reinventaram-se, sobretudo online", concorda Yolanda Fumo. "Já não fazemos espetáculos de palco, em salas convencionais, mas temos estado a trabalhar com algumas instituições."
Segundo a atriz, aparece sempre alguma coisa para fazer: publicidade ou radionovelas - não apenas sobre a Covid-19. "Temos feito radionovelas para as comunidades sobre uma série de temas: nutrição, corrupção, drogas."
Depois de muito tempo sem trabalho, também a atriz Sabina Fonseca começou a participar em radionovelas – uma delas sobre caça furtiva, emitida em várias rádios comunitárias no interior sul do país, em português e em changana. "É uma discussão entre a comunidade e o parque. O que é que o parque está a fazer para beneficiar a comunidade, que tem vivido e desenvolvido as suas aldeias mediante a caça furtiva? E o parque começa a apoiar a comunidade, para que os jovens possam crescer sem caçar", relata a atriz, que este ano também participou numa radionovela sobre empreendedorismo.
"Janete: Nada é impossível" mostra como as mulheres se adaptaram durante a atual crise provocada pela Covid-19. Janete tinha um restaurante antes da pandemia, mas teve de se adaptar às restrições e começou a entregar comida ao domicílio e nos locais de trabalho. "É uma radionovela muito bonita que incentiva as mulheres a superar as dificuldades da vida", diz Sabina Fonseca.
Entre uma ou outra gravação na rádio, também a atriz Lucrécia Noronha acabou por se dedicar mais à família durante o confinamento. "E quando as crianças estão a 100% em casa, fazemos tudo a dobrar", lembra. Entretanto, com o regresso do ensino presencial, a atriz já voltou a dar aulas de representação e teatro na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.
Onde estão os apoios?
Em Moçambique, os atores de teatro e cinema estão "desapontados" com a falta de apoios, afirma Jorge Vaz. "Os teatros até podem abrir, mas há uma série de medidas que é preciso adotar", como a higienização. "E nós não temos os valores para comprar os termómetros ou pôr máquinas. O Governo podia apoiar", apela o ator do Teatro Avenida.
"No teatro de rádio cumprimos todas as medidas sanitárias", assegura Abdil Juma, que este ano foi convidado a fazer parte do elenco de "Aquele Papo", uma série televisiva para adolescentes moçambicanos que aborda temas de saúde sexual e reprodutiva e comportamentos de risco.
"Tem muito a ver com a juventude, há muitas explicações de coisas que os jovens têm de saber: quando começar a atividade sexual, a questão da proteção não só das doenças sexualmente transmissíveis, mas também da gravidez, a questão de como encarar alguém que seja seropositivo. É um desafio muito interessante", diz.
Netflix e regresso aos palcos
Mas nem tudo foi negativo em 2020. Em julho, o filme moçambicano "Resgate" do realizador Mickey Fonseca, no qual participam vários atores do elenco habitual do Learning by Ear, chegou à Netflix, a maior plataforma mundial de streaming. "Foi uma alegria imensa! E o feedback das pessoas tem sido muito positivo", conta a atriz Arlete Bombe, que interpreta uma das personagens principais.
"É algo muito bom para o desenvolvimento do cinema moçambicano e não só para mim, a primeira atriz moçambicana a aparecer na Netflix", diz Arlete, que este ano também participou no filme "As Minhas Rosas", curta-metragem de Ruben Morgado que estreou online no início deste mês.
E a 9 de dezembro, o pano voltou a subir em Maputo, ainda que timidamente, com "À espera de Godot", de Samuel Beckett, num pequeno espaço em Maputo adaptado para atividades culturais e com entradas limitadas. O elenco? Composto sobretudo por atores que participam há muitos anos nas radionovelas da DW: além de Yolanda Fumo e Arlete Bombe, que interpretam as personagens principais, o espetáculo conta com a participação de Félix Tinga, a encenação é de Elliot Alex e a música de Carlos Xirinda.
Projetos e desejos para 2021
Ideias e projetos para o próximo ano não faltam aos atores. "Queremos voltar ao ativo", diz Lucrécia Noronha, que está a escrever um texto que espera poder apresentar num "espetáculo de teatro em que haja carinho e contacto", sublinha. "Isso está a fazer muita falta. Tornámo-nos pessoas frias. O meu desejo para 2021 é poder dar um abraço às pessoas à vontade."
"Está difícil, mas não impossível. Vamos ser resilientes e ter esperança de que melhores dias virão, custe o que custar", deseja Jorge Vaz, que tem esperança de poder voltar a trabalhar nas radionovelas da Deutsche Welle no próximo ano. "A DW tem sido uma boa parceira para os atores e é uma mais-valia para nós, além do trabalho que nos dá um prazer enorme. Já estamos juntos há muitos anos", lembra o ator.
"Temos de ter fé e acreditar que bons dias virão e que 2021 vai ser um ano diferente. Tudo o que estamos a passar hoje vai ficar na história", acredita Arlete Bombe. "Sabemos que as restrições vão continuar, por isso vamos continuar a idealizar os nossos projetos, mas tendo sempre em conta essas restrições", acrescenta Sabina Fonseca.
"E que todos entremos em 2021 com muita força, muita firmeza. Nada de pensar que a Covid-19 vai arrastar-se. Energias positivas!", deseja Yolanda Fumo, que espera viajar até à cidade de Aalen, sul da Alemanha, no ano que se avizinha. Em junho deste ano, a interpretação moçambicana de "À espera de Godot" devia ter sido apresentada em Aalen, projeto que continuaria com a troca de experiências entre jovens das artes de Vilankulo e da cidade alemã, mas a pandemia tudo mudou. "Entretanto, já começámos a fazer algumas atividades online e os jovens já se apresentaram e trocaram alguns vídeos", conta Yolanda.
Também Abdil Juma tem estado a contactar instituições para produzir mais radionovelas institucionais no próximo ano. "O futuro ainda é sombrio", admite, mas a esperança continua e é preciso "arregaçar as mangas" em 2021 para que a arte não morra. "Porque um país sem arte é um país que não existe."