Risco de conflitos: Angola pode tornar-se uma "anocracia"?
17 de fevereiro de 2023As fortes clivagens que se sentiram após as eleições gerais de agosto de 2022, em Angola, não parecem diminuir. A agitação e o clima de tensão que precederam aquele período deveriam ter dado lugar à normalidade e tranquilo funcionamento das instituições até ao ato eleitoral seguinte, a ocorrer em 2027, o que não está a acontecer.
É esta a perceção de peritos do Centro de Pesquisa e Análise (CEDESA), retratada num relatório que analisa a situação de constante tensão social que se tem registado no país depois das eleições de 2022, como nos dá conta Rui Verde, um dos promotores do referido estudo.
"Ficamos com a impressão que as eleições de agosto não resolveram a tensão existente em Angola. Houve as eleições, foi declarado um Presidente, seguiram-se todos os mecanismos legais, o Presidente foi reconhecido em todo o mundo, mas no entanto mantém-se aquilo a que se convencionou chamar de 'uma grande crispação'."
Os investigadores do CEDESA estudaram as raízes dessa crispação. Uma das fontes de tensão, segundo o jurista português, está na própria Constituição de 2010, criada quando o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), no poder, tinha 80% dos deputados.
"É uma fonte de confronto e não uma fonte de união. Portanto, nunca foi uma Constituição consensual. Além de não englobar um papel determinante que eu acho importante para as autoridades tradicionais e para os representantes locais, tem um segundo aspeto que é o desenho da figura presidencial."
Figura criada "para dar graxa jurídica"
Na opinião do académico, ligado à Universidade de Oxford (Inglaterra), criou-se "uma figura impossível para dar graxa jurídica" ao então Presidente José Eduardo dos Santos.
"Viu-se com Eduardo dos Santos e vê-se com João Lourenço que o Presidente não consegue exercer os poderes que lhe estão conferidos na Constituição porque tudo depende dele."
"Não basta a revisão", reforça Rui Verde. Daí a proposta de uma nova Constituição, que surja na base do consenso e da vontade das forças vivas da Nação angolana, mas com um enquadramento mais participado dos órgãos de soberania.
Tais clivagens levantam "uma mera hipótese" de regresso à guerra civil se não forem feitas reformas profundas visando a criação de instituições fortes, admite o jurista, que adverte para os riscos de instauração em Angola de uma anocracia, sistema que não é nem democracia nem ditadura, como se registou recentemente nos Estados Unidos e no Brasil.
São avisos que, segundo o investigador, visam também preparar as próximas eleições, em 2027, evitando o clima de tensão e de contestação dos resultados.
Tensões sociais crescentes
O jurista angolano Eliseu Gonçalves não descarta a possibilidade de Angola vir a transformar-se numa anocracia se nada for feito para evitar esta tendência. O analista põe de parte o cenário de regresso ao conflito armado em Angola, à luz dos últimos acontecimentos marcados por repressão e proibição da liberdade de manifestação e de protesto depois das últimas eleições.
"Mas, a verdade é que a falta de políticas para a inserção da juventude na vida ativa, isto sim, poderá dar origem a muitas tensões sociais e havendo essas tensões sociais o poder instituído tem sempre tendência em agir ou reagir. E esta reação pode dar origem à tal anocracia", explica.
"Se as eleições em Angola fossem após as eleições brasileiras, acredito que a juventude angolana iria imitar exatamente aquilo que aconteceu no Brasil. O que aconteceria era um levantamento popular, especialmente da juventude", acrescenta o jurista.
Eliseu Gonçalves não acredita que o atual cenário de tensão irá afetar o processo eleitoral de 2027, mas poderá provocar uma reação dos intervenientes políticos. O analista sugere a implementação de políticas que dêem resultados para a solução dos problemas da juventude angolana, entre os quais a criação de emprego.
"Especialmente a inserção da juventude na vida ativa. [Os jovens] nem reclamam mudanças políticas. Reclamam sim que haja uma política que lhes permitam estar inseridos num mercado do trabalho sustentável. Ou seja, reclamam bens sociais", sublinha.
O CEDESA refere ainda no estudo que "não basta uma mudança constitucional sem se tratar da organização e administração do Estado (…) para transformar Angola num Estado moderno e próspero".