Rafael Marques apresenta queixa-crime contra generais angolanos
14 de novembro de 2011
Os generais estão ligados a empresas que são prestadoras de serviços à Sociedade Mineira do Cuango, a qual está relacionada com a exploração de diamantes nos municípios do Cuango e Xá-Muteba, nas regiões das Lundas, no interior leste de Angola.
De acordo com Rafael Marques, a sociedade está envolvida em atos de corrupção, tortura e homicídio contra as populações daqueles municípios diamantíferos.
As empresas privadas, como a “Sociedade Lumanhe”, “ITM – Mining Limited” ou “Teleservice”, que atuam sob a tutela Sociedade Mineira do Cuango (e portanto, alegadamente, executoras de atos violentos) envolvem acionistas estrangeiros e uma dezena de generais angolanos. Entre eles encontra-se o General Hélder Manuel Vieira Dias, “Kopelipa”, Chefe da Casa Militar do Presidente da República José Eduardo dos Santos.
Para chamar à justiça os responsáveis pelos atos de violação dos direitos humanos que, alegadamente decorrem nas regiões das Lundas, o ativista e jornalista Rafael Marques decidiu apresentar uma queixa-crime.
Deutsche Welle: Quais os motivos que levaram à apresentação da queixa-crime contra generais angolanos e sócios estrangeiros na Procuradoria-Geral da República angolana?
Rafael Marques: A ação contínua de homicídios e de tortura na região diamantífera das Lundas que, a meu ver e de acordo com a Constituição angolana, configuram sérios crimes contra a humanidade. Porque são atos sistemáticos de violência contra as populações locais e que são comandados pelos generais indicados na queixa-crime, que usam o seu poder político e militar para garantirem a impunidade das empresas privadas de segurança, às quais pertencem, e das empresas diamantíferas que cometem todas essas atrocidades.
Angola alcançou a paz em 2002 na região das Lundas não se nota uma mudança no modo de vida das populações. Continuam a viver como se estivessem em tempo de guerra. E, aliás, há casos até, às vezes, em que morre mais gente ultimamente, depois do alcance da paz, do que durante a própria guerra. Há fuzilamentos. Há um caso que eu registei do fuzilamento de vinte pessoas. E estes casos acontecem regularmente. Até quando é que os cidadãos terão apenas o direito de reportar ou falar de forma acanhada sobre estes abusos?
É necessário que hajam consequências. E a forma mais prática de chamar a atenção das autoridades é levando o caso às próprias instituições judiciais do país.
DW: Quais serão os próximos passos que vão decorrer na sequência desta queixa-crime?
RM: Eu estou à espera que a Procuradoria-Geral da República dê seguimento aos casos para que as testemunhas, para que as vítimas, que são às centenas, possam então ser ouvidas pela Procuradoria-Geral da República e que, de viva voz, digam aquilo que lhes tem acontecido.
DW: E quanto tempo acha que pode demorar até à abertura do processo e a investigação?
RM: Como cidadão posso apenas manifestar a minha disposição em ser persistente para que este caso mereça a devida atenção das autoridades. Mas a Procuradoria, como as outras instituições do Estado, funcionam muito mal. E daí a necessidade de resgatá-las para que sirvam a sociedade e não apenas aqueles que estão no poder.
DW: Ao afirmar que a Procuradoria-Geral da República funciona “muito mal” teme que não seja expectável uma investigação transparente e imparcial das violações dos direitos humanos que denuncia na queixa-crime?
RM: Primeiro é um aspeto fundamental que a lei da Procuradoria-Geral da República é anti-constitucional. Porque o nº2 do artigo 5 da lei da Procuradoria-Geral da República diz, claramente, que o Procurador-Geral da República é forçado pelo Presidente a instruir e que todas as ordens do Presidente são de cumprimento obrigatório. Portanto, para cada investigação tem de haver autorização do Presidente, porque é o Presidente que manda na Procuradoria-Geral da República. E o ónus da responsabilidade acabará por cair no Presidente da República porque tem de ser ele, por lei, a decidir se faz a investigação ou não.
E será interessante, agora, ver como o Presidente da República vai decidir mandar instaurar uma investigação contra o ministro de Estado e o Chefe da sua Casa Militar, o general “Kopelipa”, que é o seu principal homem de confiança e o garante da sua segurança pessoal e do seu próprio poder.
DW: E como profundo conhecedor da realidade em Angola acredita que vai haver a abertura de processo judicial e investigação?
RM: Eu, como cidadão, tenho o direito de lutar, todos os dias, para que as instituições funcionem, estejam ao serviço dos cidadãos e que ajam com imparcialidade. Só assim é que teremos democracia em Angola.
O fato de eu acreditar ou não pouco importa. O fundamental é que os cidadãos saibam, de forma pedagógica e de forma ativa e pró-ativa, insistir junto das autoridades para que cumpram com o seu papel. E esta também é a única forma de proteção que os próprios dirigentes têm, porque senão, amanhã, quando saírem do poder não haverá instituições para os amparar. E acabarão como órfãos, acabarão muitos por fugir do país, já que não estão a criar instituições que possam defender todos os cidadãos de forma imparcial.
DW: Em última análise, que consequências poderão ter as pessoas denunciadas na queixa-crime no seguimento de uma investigação e possível julgamento?
RM: Estes cidadãos têm a possibilidade de fazer valer o seu caso através da justiça. Não o fazendo correm sempre o risco depois, numa situação de mudança política, terem de fugir do país por medo de que as instituições ou a população os persiga. Porquê? Porque se as instituições do Estado funcionam os cidadãos vão confiar nestas instituições para que façam justiça. Não havendo intervenção das instituições, os cidadãos quererão, eles próprios, fazer justiça. E é isso que deve ser evitado.
E a única segurança que estes generais podem ter para quando se retirarem e viverem à vontade com as fortunas que têm estado a ganhar, com os banhos de sangue que realizam nestas áreas [nas Lundas], a única forma que eles têm de se reformar aqui no país e viverem com alguma segurança é usando as instituições do Estado para colocá-las ao serviço de todos os cidadãos; senão amanhã terão de fugir.
A população, certamente, está a ver estes casos. A população pode parecer muito pacífica ou passiva, mas não é. Então, o fato de eu apresentar este caso em tribunal também confere alguma esperança aos próprios cidadãos. Muitos cidadãos nas Lundas decidiram juntar-se à queixa. É uma forma de mostrar como nós devemos agir numa sociedade, de uma forma civilizada e democrática, usando os canais do Estado para o exercício da cidadania e da justiça.
DW: Rafael Marques quando foi a primeira vez que levou à justiça casos de alegadas violações de direitos humanos nas regiões diamantíferas de Angola?
RM: A primeira vez que eu levei estes casos à justiça foi a 1 de abril de 2006. Eu apresentei uma queixa-crime na seção de investigação criminal do município do Cuango. E a 11 de abril do mesmo ano fui ouvido para prestar mais declarações sobre o que se estava a passar na região. E levei testemunhas. Nessa altura, eu cheguei a levar um indivíduo congolês que tinha sido torturado de tal forma e mordido pelos cães da “Teleservice” [empresa prestadora de serviços de segurança à Sociedade Mineira do Cuango] que tinha uma septicemia grave, tinha o corpo todo em feridas. E acabou por morrer no hospital (fui eu que o levei ao hospital).
A polícia foi [ao hospital], fotografou o homem, tirou as provas, pediu-me para apresentar queixa. Depois foi para [a polícia] um general e mandou não só abafar o caso como adulterar a queixa, para que fosse uma queixa contra mim. Felizmente, a própria direção nacional de investigação criminal teve o bom senso de mandar alguém para [o departamento policial] que verificou a adulteração da queixa. E então, ao invés de me perseguirem, preferiram arquivar o caso.
Mas, passados cinco anos, eu volto a apresentar uma nova queixa porque estes casos não desaparecem. E também é preciso recordar aos generais angolanos que os crimes contra a humanidade, de acordo com a Constituição angolana, não prescrevem. Mesmo daqui a vinte anos eles poderão ser indiciados por esses crimes. E este trabalho que está a ser feito, de recolha de informação, são provas que ficam marcadas.
Autora: Glória Sousa
Edição: António Rocha