130 anos depois, o Brasil ainda tem resquícios da escravidão
11 de fevereiro de 2018As crianças brincam entre barracas de madeira sob o dossel de uma enorme árvore de Banyan. Lorico Silva observa-as. Ele é um dos membros de uma das 15 famílias que habitam no Quilombo da família Silva em Porto Alegre, no estado de Rio Grande do Sul, Brasil. Os seus avós mudaram-se para ali há 70 anos.
"Isto era tudo floresta. Já não é mais", recorda Lorico Silva. "Estão a tentar expulsar-nos daqui… Estão a tentar desde sempre. Mas não vão conseguir. Nós não vamos sair daqui, porque esta é a nossa casa", afirma peremptório.
Este foi o primeiro quilombo, uma espécie de comunidade de descendentes de escravos africanos, a ser oficialmente reconhecido com o título de "terra” em 2009 no Brasil. Mas esse reconhecimento não impediu que promotores imobiliários os tentassem afastar daquele lugar.
Lorico Silva usa uma bengala e a sua voz é arrastada, resultado de um acidente vascular cerebral durante um discurso numa universidade local enquanto contava a história de um raide policial em 2010. Na altura, a polícia acusava os moradores de abrigarem criminosos. Anos depois, as ameaças foram chegando de outras formas: subornos para comprar residentes e dividir os membros da comunidade.
As terras deste quilombo estão entretanto a ser invadidas pelo crescimento dos bairros de luxo na sua periferia.
Brasil, o último país a abolir a escravidão
Os tempos da escravatura deixaram uma marca particularmente sangrenta no Brasil. Ao longo de três séculos, cinco milhões de africanos foram arrancados das suas casas, colocados dentro de barcos sem condições e obrigados a atravessar o oceano para serem vendidos como escravos. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão em 1888. Mesmo assim, a indiferença das autoridades deixou os escravos e os seus descendentes à mercê de si próprios. Dezenas de anos depois, o fosso entre as comunidades branca e negra mantém-se. O mito generalizado da democracia racial é apenas isso - um mito.
Recentemente, os quilombos tornaram-se uma forma das comunidades negras adquirirem, de alguma forma, a "reparação" do legado de escravidão. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, que certifica quilombos, existem agora mais de 3.000 em todo o país. Apenas 220 receberam títulos de terra.
No entanto, todos estes títulos estiveram até quinta-feira (08.02) sob ameaça legal. Estavam pendentes de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil que poderia invalidar as demarcações dos quilombos e torná-los vulneráveis às vontades dos políticos.
O STF julgou que o decreto presidencial sobre as demarcações dos quilombos é constitucional, rejeitando uma ação do antigo Partido da Frente Liberal, atual Partido Democratas, que pedia a revisão das regras e podia paralisar cerca de 1.500 processos de legalização de quilombos. Dez ministros votaram pela constitucionalidade do decreto e apenas um votou contra. Em risco estiveram as vidas de mais de um milhão de pessoas que habitam em centenas de quilombos por todo o país.
Racismo mantém-se
Porém, este é só um entre os três casos sobre direitos de terra dos indígenas e comunidades negras que chegaram recentemente ao Supremo Tribunal. Estes casos surgiram com a crescente influência de grandes empresários e negócios sob a alçada do Governo de Michel Temer.
"A polícia mata um negro todos os dias. Todos os dias, estamos a ser discriminados. Todos os dias temos que nos defender", diz Jamaica Machado, líder do Quilombo Machado que alberga 300 famílias em Porto Alegre. "O meu filho tem seis anos. E eu tenho que ensiná-lo - assim como a minha mãe e a minha avó me ensinaram – a lutar contra o preconceito e contra aquilo que o Governo está a fazer para nos derrubar e oprimir", lamenta.
De acordo com dados do Governo, cerca de dois terços dos desempregados brasileiros são de raça negra. Setenta por cento das vítimas da alta taxa de homicídios no Brasil também é negra.
O Presidente Michael Temer tirou do seu caminho estruturas que poderiam evitar a escalada deste problema, como é o caso do fim da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
"Nós não existimos se não tivermos a nossa terra… Se não tivermos um sítio onde possamos praticar a nossa cultura e a nossa história”, alerta Tamirez Diaz, uma estudante de direito e ativista.