Quantas pessoas morreram por causa do Mundial no Catar?
17 de novembro de 2022O debate sobre custo humano do Mundial de Futebol de 2022 e o tratamento dado aos trabalhadores estrangeiros dura há mais de uma década, desde que o Catar ganhou o direito de acolher o evento.
Há várias estimativas sobre quantos trabalhadores morreram nos estaleiros de obras do campeonato no Catar, mas é difícil apurar o número real.
A DW verificou os factos analisando os números publicados pela FIFA, autoridades do Catar, grupos de direitos humanos e os meios de comunicação social, que têm sido constantemente mencionados como verdadeiros, enganadores ou mesmo falsos. Os autores estão conscientes de que os números transmitem apenas uma vaga noção do sofrimento alegadamente sofrido pelos trabalhadores migrantes no Catar.
Afirmação: "O Mundial de Futebol no Catar custou a vida a 6.500 - até mesmo 15.000 - trabalhadores migrantes."
Conclusão da DW: A afirmação é falsa.
O número amplamente divulgado de 15.021 mortes de trabalhadores migrantes relacionadas com o Mundial no Catar tem origem num relatório da Amnistia Internacional de 2021. Também amplamente divulgado é o número de 6.500 mortes, publicado pela primeira vez pelo jornal britânico The Guardian, em fevereiro de 2021.
Embora estes números tenham sido utilizados várias vezes para sustentar esta afirmação, desde que estes relatórios foram publicados, nem a Amnistia Internacional nem o Guardian afirmaram que todas estas mortes ocorreram em locais de construção de estádios, ou mesmo no âmbito do Mundial de Futebol de 2022. Ambos os números referem-se apenas a cidadãos de fora do Catar, de várias profissões, que morreram no país na última década.
O número de 15.021 mortes citado pela Amnistia Internacional foi obtido a partir de estatísticas oficiais das próprias autoridades do Catar e refere-se ao número de estrangeiros que morreram no país entre 2010 e 2019. Entre 2011 e 2020, foram 15.799 mortes.
15.000 mortos - mas não só por causa do Mundial de Futebol
Este dado inclui não só trabalhadores da construção civil pouco qualificados, pessoal de segurança ou jardineiros, que podem ou não ter sido empregados em projetos relacionados com o Mundial de Futebol, mas também professores, médicos, engenheiros e outros empresários estrangeiros.
Muitos vieram de países em desenvolvimento como o Nepal e o Bangladesh, enquanto outros era oriundos de nações de rendimento médio ou alto. As estatísticas do Catar não permitem uma análise mais detalhada.
Quanto ao Guardian, o jornalista Pete Pattisson e a sua equipa basearam o número total de 6.751 mortes em estatísticas oficiais dos Governos do Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka, cujos cidadãos constituem uma proporção significativa de trabalhadores migrantes no Catar - em particular trabalhadores pouco qualificados.
O Catar não nega nenhum destes números. De facto, em resposta ao Guardian, o Gabinete de Comunicação do Governo do país afirmou: "Embora cada perda de vidas seja perturbadora, a taxa de mortalidade entre estas comunidades está dentro do nível esperado para a dimensão e demografia da população". Mas será isso verdade?
Afirmação: "A taxa de mortalidade entre estas comunidades está dentro do nível esperado para a dimensão e demografia da população."
Conclusão da DW: A afirmação é enganosa.
Segundo o Governo do Catar, 1.500 mortes por ano num total de dois milhões de pessoas é uma taxa de mortalidade média normal.
Em primeiro lugar, deve-se afirmar que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), as taxas gerais de mortalidade dos trabalhadores migrantes no Catar são mais baixas do que nos seus países de origem. De facto, mesmo a taxa de mortalidade entre os cidadãos do Catar é superior à dos trabalhadores migrantes no Qatar.
Contudo, dado que os trabalhadores migrantes no Catar não são representativos das populações em geral nos seus países de origem ou no Qatar, tais números são enganadores.
Trabalhadores migrantes no Catar são fundamentalmente saudáveis à chegada
Por exemplo, a proporção de crianças pequenas e idosos - grupos demográficos com as maiores taxas de mortalidade - entre os trabalhadores migrantes no Catar não se pode comparar com a de uma população geral de qualquer país.
Além disso, os trabalhadores migrantes no Catar, independentemente da sua origem ou emprego, são geralmente pessoas saudáveis que têm de passar por uma série de exames médicos para obter um visto, filtrando potenciais candidatos com doenças infeciosas como o HIV/SIDA, hepatite B e C, sífilis ou tuberculose.
Tais estatísticas também não incluem os trabalhadores migrantes que falecem depois de regressarem aos seus países de origem. No Nepal, nos últimos 10 anos, por exemplo, as autoridades registaram um aumento significativo do número de casos fatais de insuficiência renal entre homens com idades compreendidas entre os 20-50 anos, muitos dos quais tinham acabado de regressar do trabalho no Médio Oriente. O trabalho árduo nas condições climáticas do Golfo Pérsico, combinado com a baixa quantidade e qualidade da água potável, tal como relatado pelas pessoas afetadas, poderá explicar o problema, de acordo com especialistas de saúde no Nepal.
Afirmação: "Houve apenas três mortes relacionadas com o trabalho em estaleiros de obras de estádios do Mundial de Futebol."
Conclusão da DW: A afirmação é enganosa.
Tanto a FIFA como o comité organizador do Mundial de Futebol no Catar insistem que apenas três pessoas morreram como resultado direto do seu trabalho nas obras para o campeonato.
A definição oficial da FIFA e do Catar de "mortes relacionadas com o trabalho" refere-se a mortes nos locais de construção dos sete novos estádios, bem como a instalações de treino que o Catar construiu na última década. Os três incluem dois homens nepaleses no Estádio Al Janoub, em Al Wakrah, e um britânico no Estádio Internacional de Khalifa, em Al Rayyan.
Alargando a definição para "mortes não relacionadas com o trabalho" não diretamente ligadas à construção, as autoridades reconhecem mais 37 mortes, incluindo, por exemplo, dois indianos e um egípcio que morreram num acidente de viação enquanto viajavam do trabalho para o seu alojamento, em novembro de 2019.
Contudo, a escolha do Catar como sede do Mundial de Futebol desencadeou um verdadeiro boom na construção civil do país, que vai muito além dos estádios. Foi empreendida toda uma série de projetos ligados ao campeonato, incluindo novas autoestradas, hotéis, um novo sistema de metro, uma expansão do aeroporto e uma cidade totalmente nova em Lusail, a norte de Doha. De facto, mesmo no pico da construção, a FIFA afirma que pouco mais de 30.000 trabalhadores foram efetivamente empregados em locais específicos do Mundial.
O reconhecimento oficial de três mortes, portanto, não tem em conta as mortes que podem ter ocorrido noutros locais de construção, que provavelmente não teriam existido sem o Mundial de Futebol. Também não tem em conta milhares de casos documentados de trabalhadores migrantes que morreram nos seus alojamentos, fora das horas de trabalho, para os quais não foram dadas explicações adequadas.
De acordo com investigações do jornal The Guardian e da Amnistia Internacional, esta última utilizando números fornecidos pelo Governo do Bangladesh, os médicos do Catar atribuem cerca de 70% das mortes a "mortes naturais" causadas por insuficiências cardiorrespiratórias agudas.
No entanto, para os epidemiologistas, insuficiências cardíacas e respiratórias não são consideradas oficialmente como causas de morte, são vistas apenas como uma consequência. A causa de uma paragem cardíaca pode ser um ataque cardíaco ou outra irregularidade, enquanto a insuficiência respiratória pode ser causada por uma reação alérgica ou envenenamento.
Mas essas explicações não são dadas. De facto, numa série documental de 2022 da emissora pública alemã ARD, os médicos do Catar chegam mesmo a informar que são obrigados a preencher certificados de óbito como tal.
Já em 2014, num relatório independente encomendado pelo Governo do Qatar, o escritório de advocacia global DLA Piper criticou esta prática e "recomendou vivamente" ao Governo que "autorizasse autópsias em casos de morte inesperada ou súbita". No final de 2021, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) também criticou a falta de documentação adequada sobre acidentes e causas de morte.
Segundo os peritos entrevistados pela Amnistia Internacional, as causas precisas de morte ficam indeterminadas em apenas 1% dos casos em "sistemas de saúde bem geridos". Além disso, autópsias invasivas raramente são necessárias. Em cerca de 85% dos casos, autópsias verbais, envolvendo testemunhas ou conhecidos do falecido, são suficientes.
Organizações de direitos humanos como a Human Rights Watch, Amnistia Internacional e Fairsquare falam regularmente com essas testemunhas. Os relatórios das organizações sugerem que a insolação, exaustão ou mesmo doenças menores que não são tratadas estão na origem de muitas mortes súbitas e inexplicáveis.
Em conclusão, os números relativos a mortes relacionadas com o Mundial de Futebol de 2022 variam consoante a definição, incluindo de onde vieram os trabalhadores migrantes, onde e quando morreram, e se as suas mortes podem ser descritas como relacionadas com o trabalho ou não.
No entanto, dadas as inconsistências e deficiências nos próprios dados oficiais do Catar, é impossível chegar a uma conclusão concreta, o que, por sua vez, levanta a questão de saber por que razão exatamente as autoridades do Catar não são capazes de fornecer informações fiáveis.
Agradecemos a Ellen Wesemüller, da Amnistia Internacional, Pete Pattisson, do Guardian, e Nicholas McGeehan, do Fairsquare, pelas suas informações e por nos ajudarem a compreender as suas conclusões. Infelizmente, vários pedidos de comentários às autoridades do Catar, Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka ficaram sem resposta até à publicação deste trabalho.
Sebastian Hauer colaborou no artigo.
Esta verificação dos factos foi originalmente escrita em alemão.