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“Pena que não continuemos a ter campos de reeducação”

29 de setembro de 2012

Para Joaquim Chissano, ex-Presidente de Moçambique, não foram medidas impopulares tomadas pela FRELIMO que levaram a uma rebelião contra o governo e, portanto, à guerra civil. A guerra foi, para ele, de desestabilização.

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“Pena que não continuemos a ter campos de reeducação”, diz Joaquim Chissano
“Pena que não continuemos a ter campos de reeducação”, diz Joaquim ChissanoFoto: DW/M.Barroso

“Guerra civil é uma guerra que nasce por causa de um conflito interno dentro de um país, entre duas partes da população ou entre entidades políticas. Não foi o que aconteceu no nosso país.” Em 1986, depois da morte de Samora Machel, Joaquim Chissano assumiu a presidência de Moçambique.

A 4 de outubro de 1992, Chissano assinou, pela FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique, o Acordo Geral de Paz com a RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana.


DW África: Há quem diga que a guerra civil em Moçambique só foi possível, porque outros países interferiram e financiaram os dois lados da guerra. Concorda?

Joaquim Chissano (JC): Não concordo. Se tivesse sido só a Rodésia e terminasse com a independência da Rodésia, já estávamos quase a resolver tudo. Mas a África do Sul tomou o comando e continuou. Portanto não se tratou apenas de financiar. Tratou-se de preparar todas as condições: desde a conceção, treinamento, toda a logística e a direção das operações. E as primeiras bases daquilo que podemos chamar – para facilitar a compreensão – de rebeldes foram criadas por oficiais das forças militares rodesianas, por sinal, brancos. E os primeiros ataques foram realmente conduzidos no terreno por eles. Moçambique defendeu-se como um país soberano e utilizou as forças armadas que tinha e procurou os apoios em armamento nos países com que tinha relações e felizmente já tínhamos relações com um certo número de países sobretudo os países socialistas que nos apoiaram para aguentarmos com essa guerra.

DW África: Então quais foram os papéis da RENAMO e da FRELIMO?

JC: Os países que eram hostis a Moçambique utilizaram este movimento anti-independência, recrutaram pessoas, utilizando métodos psico-sociais, em que se formam as mentalidades de um certo número de moçambicanos que saem de Moçambique e vão oferecer-se para serem treinados na Rodésia. E mais tarde, muitos deles foram raptados e instrumentalizados e assim ingressaram no que depois veio a chamar-se de RENAMO.

E o papel deles era fazer aquilo que eram instruídos para fazer, muitos foram feitos crer que tinham um movimento próprio. Eles dizem que estavam a opor-se ao comunismo, à ditadura, mas esta guerra de desestabilização começa apenas seis meses [depois de proclamada a independência], não tinham visto como a FRELIMO ia governar, portanto estavam já com ideias pré-concebidas e começam a lutar contra nós. E se calhar essa luta obrigou-nos a ir mais depressa e a definir-nos como aliados dos países comunistas, porque tinham mobilizado toda uma força contra nós e nós tínhamos aquela proteção.

Bom, e o papel da FRELIMO era defender o país, era um país soberano, só tem um papel. A luta não foi entre a RENAMO e a FRELIMO. A luta foi entre a RENAMO com os países do exterior contra o governo, contra o Estado moçambicano. Muita gente fala da guerra entre RENAMO e FRELIMO, está errado.



DW África: Em qualquer conflito há violações dos direitos humanos. Tendo em vista as atrocidades cometidas pela RENAMO durante a guerra, como se explica a adesão sobretudo no centro do país?

JC: Não sei se isso corresponde à verdade. Mas o impacto das próprias atrocidades tornou muita parte da população, nos princípios, subserviente à RENAMO, sobretudo onde eles pareciam ser mais fortes do que a FRELIMO. Porque o critério era: “Ou você está connosco ou vocês está morto”. E, como a FRELIMO não fazia a mesma coisa, diziam “esses são mais fortes, nós temos de nos encostar aos mais fortes”. Mas isso depois desapareceu.

DW África: Acha que a FRELIMO optou por algumas medidas consideradas impopulares que terão levado ao descontentamento de parte da população?

JC: Eu não estou a ver quais medidas impopulares é que podiam ter sido tomadas. Alguns erros podem ter sido cometidos, sim, quando foi da criação das aldeias comunais. Em algumas zonas do país, o processo não teria sido bem esclarecido à população e a população pareceu sentir-se constrangida a aderir às aldeias comunais quando não era nada compulsivo. Tratava-se de uma reorganização da população para lhes dar melhores condições de vida. Mas isso foi levado pelos nossos detractores de má fé e fez-se uma campanha em volta.

DW África: Agora à distância, como avalia a existência de campos de reeducação?

JC: Campos de reeducação, para nós, significavam exatamente isso: reeducação, reabilitação das pessoas. Foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de reeducação. Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se. Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que tinham roubado ou até tinham assassinado. E eram reabilitadas. Era um lugar onde as pessoas faziam a sua agricultura, tinham o seu rendimento, refaziam a sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios. E então viu-se que ali estávamos a criar um modelo de reeducação de pessoas que haveriam de ser inúteis na vida e poucos países fazem isto. Mas houve uma campanha muito forte contra isto. Mas o pior é que em 1980, a guerra alastrou-se a esses sítios e tiveram de ser descontinuados.

DW África: Mas pessoas como, por exemplo, Uria Simango, que chegaram a ser da FRELIMO, foram também enviadas para campos de reeducação. Que crime cometeram?

JC: (suspiro) Deu o exemplo de Uria Simango: é a traição. Desse grupo aí é a traição da própria luta de libertação. O caso do nome que indicou, mais alguns, enquanto nós estávamos a negociar a independência em Lusaka, com a delegação portuguesa, eles estavam aqui em Maputo a organizar-se com os mais renitentes dos portugueses para se opor à proclamação da independência nacional. Chegaram a tomar a Rádio Mocambique, o aeroporto de Maputo para ir pedir que se proclamasse a independência e hastearam a bandeira portuguesa na Rádio Moçambique e fizeram a sua reunião. Um golpe de estado antes da proclamação da independência. Para não falar das traições anteriores.

Mas também aí havia alguma esperança de reabilitar essas pessoas, podia ter acontecido se não tivesse havido a desestabilização que depois precipitou o que aconteceu com eles, foram mortos por causa deste ambiente de desestabilização.

DW África: Desde a independência de Moçambique, o país tem sido governado por um só partido, a FRELIMO. A que acha que se deve isso?

JC: Deve-se à génese desse partido que é um partido de todo o povo. E continua a ser o partido de todo o povo. E com a introdução do multipartidarismo parecia ser impossível que continuasse a ser partido de todo o povo, mas as evidências mostram que o povo ainda não se esqueceu da sua génese. E portanto o povo sente-se identificado [com] este partido. Nós não tivemos uma reunião para definir que éramos um sistema monopartidário. O que aconteceu é que havia só um partido político.

DW África: Hoje em dia há mais partidos. O maior partido da oposição continua a ser a RENAMO. A que acha que se deve o enfraquecimento da RENAMO como maior partido da oposição, um enfraquecimento que se tem vindo e verificar nos últimos anos?

JC: É devido à sua génese. Assim como a FRELIMO ficou forte por causa da sua génese, a RENAMO não tinha base de sustentabilidade. Nasceu não pelo interesse da população, então à medida que o tempo passa, vai caindo.

DW África: Depois do fim da guerra em 1992, Moçambique tornou-se no menino dos olhos de muitos países doadores. Contudo, estes investimentos não têm tido muitas repercussões ao nível da economia local aqui em Moçambique. Será que o país realmente beneficiou deste apoio?

JC: Eu penso que sim.

DW África: Em que medida?

JC: Eu só posso dar exemplos: na minha aldeia não havia energia elétrica. Hoje, muita gente na minha aldeia beneficia da luz elétrica. Portanto, a economia tem, sim, impacto nas populações. (...) A estrada que vai para a minha aldeia nao era alcatroada. Hoje, passam muitos carros, levam mercadorias, as pessoas visitam-se mais. Na minha aldeia nao havia água. Hoje, há água canalizada em muitas casas. A minha aldeia fica a 300km de Maputo, nao é uma cidade. (...)

DW África: Perante o exemplo da sua aldeia, acha que o país se tornou dependente da ajuda externa?

JC: comecou por estar dependente da ajuda externa em 70% ou mais. Hoje, está dependente da ajuda externa em cerca de 40, 45%. Isso significa que há um avanco tremendo nesse aspeto de auto-suficiência. Nós hoje já nao andamos a importar milho para comer. E vamos fazer a mesma coisa com o arroz. Hoje, nós temos mais de 40 universidades no país. Portanto, a dependência está a diminuir em vários setores.

DW África: Que balanço faz destes 20 anos de paz?

JC: Os 20 anos de paz é que facilitaram o desenvolvimento rápido do país. Porque antes, logo que ascendemos à independência, em 1975, nós começámos com um desenvolvimento espetacular: no domínio da educação, triplicámos o número de escolas, o número de alunos. Mas depois vimos essas escolas e esses alunos serem dizimados pela guerra. Portanto, a paz era necessária para o desenvolvimento do nosso país.


Nota da redação: Em 2007, Joaquim Chissano venceu o Prémio Ibrahim de boa governação. O prémio, atribuído pela fundação do magnata sudanês Mo Ibrahim, pretende distinguir antigos chefes de Estado ou de Governo africanos que tenham mostrado excelência durante a execução do seu cargo.

Autora: Marta Barroso
Edição: António Rocha


O Acordo Geral de Paz, assinado a 4 de outubro de 1992, pôs fim a 16 anos de guerra civil
O Acordo Geral de Paz, assinado a 4 de outubro de 1992, pôs fim a 16 anos de guerra civil
Joaquim Chissano foi Presidente de Moçambique entre 1986 e 2005
Joaquim Chissano foi Presidente de Moçambique entre 1986 e 2005Foto: Ismael Miquidade

"Pena que não continuemos a ter campos de reeducação", diz Joaquim Chissano