"Papa Francisco quer presidir na caridade", diz teólogo brasileiro Leonardo Boff
Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco vem dando diversas demonstrações de humildade e simplicidade. Abriu mão de viver no Palácio Apostólico e não quer ser chamado de "Sua Santidade", mas sim de "Bispo de Roma".
Seriam sinais de novos tempos para uma Igreja Católica mais próxima dos pobres e desfavorecidos?
Há quem considere que o Papa faz um movimento de retorno aos valores da Teologia da Libertação, que surgiu no início dos anos 50 na América Latina e é considerada uma interpretação dos ensinamentos de Jesus Cristo com foco na libertação de injustas condições econômicas, políticas e sociais.
No Brasil, o representante mais importante da Teologia da Libertação, internacionalmente reconhecido, é o teólogo Leonardo Boff. Boff acredita que sob a liderança do Papa Francisco inaugura-se uma era marcada pela caridade, pela descentralização do poder da Igreja e até mesmo pela quebra consentida de alguns de seus mais antigos e debatidos tabus.
No Rio de Janeiro, Leonardo Boff falou com exclusividade à DW.
DW: Leonardo Boff, na sua opinião, no Século XXI, o Catolicismo ainda precisa da figura do Papa?
Leonardo Boff: Fundamentalmente, não precisaríamos de um Papa. Na medida em que a Igreja [Católica] se transformou numa instituição, ela assumiu as funções que o imperador romano tinha. Os símbolos do poder - o próprio nome Papa, que era exclusivo dos imperadores, e aquela capinha que os Papas usavam, até [o Papa] Francisco, cheia de brocados e ouro - só os imperadores podiam usar. Francisco, quando ofereceram a capinha ele disse: "O carnaval acabou, não quero isso."
O Papa tem o poder absoluto, poder imediato, poder sobre todos os fiéis e sobre cada uma das pessoas e isso destrói todas as diversidades e todos os sentidos de participações. Tudo [está] concentrado numa pessoa só. Acho que o último Papa dessa larga tradição de quase 1.500 anos foi [o alemão Joseph] Ratzinger. Agora, no meu modo de ver, começa a tradição, e ele já acenou a isso, de um Papa que preside na caridade.
DW: Num mundo de valores democráticos, de que forma o novo Papa deveria exercer sua função, que tem ainda, como você explicou, características absolutistas?
LB: Especialmente hoje no processo de globalização, é importante fazer o equilíbrio entre uma referência de unidade e uma descentralização nas muitas culturas, porque o Cristianismo é uma religião do Ocidente e ele não pode ser mais do Ocidente, tem que ser uma religião mundial. Acho que este Papa tem essa consciência de tal maneira que ele quer governar colegialmente, como convocou já oito cardeais para fazerem a reforma da cúria, a reforma da Igreja, e governar junto com ele.
DW: Há uma calorosa discussão sobre o papel do Papa na sociedade Ocidental cristã. Ele deve se limitar à sua missão de fé ou deve exercer também um papel político?
LB: Acho que independente [da vontade] dele, ele tem um poder político-social. Ele é talvez o maior arquétipo do Ocidente, porque há um vazio de líderes e uma aura de sacralidade - porque ele é herdeiro de uma instituição que tem 2.000 anos e foi a primeira multinacional do mundo. Então, objetivamente ele irradia um tipo de autoridade. Se ele a exerce como Ratzinger e João Paulo II - punindo pessoas, dando lições ao mundo, sentindo-se representante de Deus - acho que é arrogância.
Esse aqui [o Papa Francisco], não quer. Ele quer dialogar com o mundo moderno, com o mundo pós-moderno, não tem preconceitos e a única autoridade que ele pode assumir é uma função de moral, de convocação das consciências para lutar contra a pobreza, cuidar da terra, cuidar uns dos outros. É uma função não-autoritária e é importante que assim seja - como Mahatma Ghandi era, como Martin Luther King era, como Nelson Mandela. Ele está nesta linha das lideranças positivas e éticas da humanidade.
DW: Pensando neste papel político-social do Papa, de que forma você acredita que este primeiro Papa sul-americano vai influenciar a política do continente?
LB: O modo de ser dele - a centralidade nos pobres e na justiça social - vai reforçar as novas democracias, que nasceram de baixo, na resistência e na oposição aos militares, e que estão fazendo boas políticas sociais para os pobres com inclusão social. Tem uma função política importante. Talvez ninguém no mundo de hoje possa reunir um milhão de pessoas. Mas ele atrai. Ele representa valores que vão ao encontro dos ancestrais desejos humanos: de fraternidade, de encontro, de paz. E acho que ele representa bem isso.
DW: Haveria então um denominador comum nos ideais a favor dos pobres do Papa Francisco e nos dos governos que investem em políticas de inclusão social?
LB: Sim, acho que é isso. Porque o Papa dizia: "O problema dos pobres não se resolve com assistencialismo e filantropia. Se resolve com justiça social. São políticas que dão autonomia, incluem as pessoas e as fazem cidadãs." Essa visão, é a visão da Igreja da libertação da base dessas novas democracias que fazem uma inclusão.
DW: Em muitos países do mundo, os jovens têm promovido a transformação política por meio de manifestações pacíficas, como recentemente aconteceu no Brasil. Acha que o Papa Francisco entende os anseios e necessidades desses jovens?
LB: São cinco mil famílias brasileiras que controlam 43% de toda a riqueza nacional. O Brasil não é mais pobre que qualquer país africano. Mas é mais injusto, porque lá [em África] há mais distribuição. Esses jovens estão se manifestando contra esse tipo de Brasil e na linha de direitos sociais. Então o Papa entendeu e disse: "A causa deles é justa", porque são direitos ligados à vida: saúde, trabalho e educação.
Ele não vai apoiar diretamente, mas a irradiação dele vai reforças essas políticas. Ele fez uma declaração corajosa em Roma, dizendo: "Os políticos têm que escutar os jovens na rua. A causa dos jovens é legítima, justa e é conforme o Evangelho". Forte! Se se trata da vida, Jesus disse isso: "Vim trazer vida! Vida é abundância!"
DW: Na sua avaliação, qual seria a mensagem do Papa Francisco para os jovens e fiéis em geral?
LB: Ele disse claramente que o centro das preocupações não é a Igreja, é como cuidar do planeta terra e cuidar uns dos outros para termos futuro. Em que medida o potencial cristão ajuda a humanidade - e não ajuda a Igreja. A preocupação dele não é mais essa visibilidade da Igreja e que possivelmente esses jovens despertem para a sua responsabilidade social. Isto é, que um cristão, pelo fato de ser cristão, tem que ajudar a transformar esse mundo que como está, está ruim.
DW: Então, Leonardo Boff, o Papa ajuda mais a humanidade do que a Igreja. Isso não é uma contradição católica?
LB: Acho que é despertar a ética e uma visão espiritual do mundo, que não significa uma visão confessional. Valores de solidariedade, de amor, de capacidade de diálogo, tolerância com as diversidades. Esse acho que é o discurso adequado a uma Igreja que deixa de ser Ocidental e se torna planetária. Esse é o Papa da ruptura, a palavra que Joseph Ratzinger [antigo Papa Bento XVI] e João Paulo II mais temiam.
A figura do Papa não é mais a clássica, é outro. Ele não começou com a reforma da cúria, começou com a reforma do papado. Deixou a limusine, deixou todo o aparato de poder, deixou a cruz de ouro e não quer que o chamem de "Sua Santidade". Quer presidir na caridade, isso é a ideia do Século I.
DW: Falando agora um pouco sobre os tabus da Igreja. Nas comunidades mais remotas, especialmente onde não há padres, percebe-se uma ansiedade por mudanças por uma abertura da Igreja Católica para a celebração da eucaristia por leigos, por exemplo. Você acha que essa expectativa é real?
LB: Acho que ele vai dar importância, ele já acenou a isso, à autonomia das conferências continentais. Então, se na América Latina, por exemplo, os bispos decidirem reconhecer a importância dos ministérios - que já estão sendo feitos, só que não são reconhecidos e 60% das lideranças das comunidades de base são mulheres. Na África, por exemplo, é impensável um padre celibatário porque, dizem, é a mulher que dá energia ao homem. Então, o importante é o Cristianismo recuperar o seu caráter de movimento aberto. Ele pode se cristalizar em igrejas, mas não necessariamente.
DW: Qual seria o caminho para que o Cristianismo recupere esse caráter de movimento ao qual você se refere?
LB: Primeiro, permitir que os padres casados, que são 100.000 no mundo, possam voltar ao ministério como casados. O segundo passo é deixar o celibato optativo. E o terceiro passo é reconhecer aquilo que as mulheres já fazem na Igreja. Especialmente nas periferias, elas que levam as celebrações. Ela realiza isso e a Igreja reconhece. Pelo número de católicos o Brasil deveria ter 100.000 padres. Temos 17.000. Então, institucionalmente, a Igreja está numa profunda crise e em fracasso.
DW: Mas seria realista esperar que o Papa Francisco inicie este processo de independência regional? Ou seja, você acredita que o Papa vai deixar as doutrinas do Vaticano, como a de que divorciados não podem se casar na Igreja novamente?
LB: Acho que ele vai permitir o batismo e vai permitir a comunhão aos divorciados. Até agora os temas da moral sexual, da moral familiar, do celibato e dos homoafetivos eram temas proibidos de serem discutidos. Agora acho que ele vai permitir a discussão e a partir da discussão ele pode incorporar vários elementos novos de flexibilização que representam o consenso dos fiéis. Ele não vai ser contra a maioria do povo de Deus.
DW: Há aí diversos pontos sensíveis, como o dos homossexuais, por exemplo. Muitos querem ser cristãos e se sentem excluídos. Será que o Papa fará também uma abertura neste aspecto?
LB: Na Argentina, ele moveu uma campanha contra. Por isso, a gente precisa saber se ele vai repetir isso, ou se vai fazer uma grande consulta à Igreja. E acho que a Igreja hierárquica pode ter a sua posição - pode ser contra o aborto etc. - mas não pode impor isso à sociedade. Em doutrina e moral ele vai repetir a versão tradicional, com uma diferença: ele vai permitir discutir e na discussão, possivelmente, ele pode mostrar flexibilidade.
DW: O que falta para a Igreja Católica atingir este consenso entre a realidade experimentada pelos fiéis em seu quotidiano e os dogmas teóricos da igreja?
LB: A Igreja tem que se acostumar a viver dentro da democracia. Ela sempre assumia uma posição de excepcionalidade. Ela interpreta a lei natural, representa Cristo e Deus e se sente obrigada a dizer isso. Acho que essa é uma concepção monárquica, de arrogância e ela tem que conviver com a diversidade religiosa, diversidade de opiniões e respeitar as decisões que a sociedade tomar.
DW: Você disse que a Igreja está em crise. Seria, então, este o momento para uma renovação da Igreja Católica?
LB: Na Europa, só vivem 24% dos católicos, 62% na América Latina e o restante [14%] na África e na Ásia. O Cristianismo hoje é uma religião do Terceiro Mundo que um dia teve origens no Primeiro Mundo. Acho que o Papa Francisco vai criar uma dinastia de Papas do Terceiro Mundo - África, Ásia e América Latina. As nossas igrejas já não são mais igrejas espelho, imitando as europeias. São igrejas fonte. Criaram as suas tradições e as suas formas de celebrar. Elas estão dando vitalidade ao Cristianismo.