Moçambique: Armando Guebuza, de Messias a Judas
14 de fevereiro de 2019Quando assumiu a Presidência de Moçambique, em 2005, muitos viam-no como o Messias que faria as reformas que o país exigia. Armando Guebuza era visto como homem de pulso, afinal o seu passado político tinha deixado referências. Mas não foi preciso muito tempo para que reinasse uma deceção generalizada em relação ao Presidente. Nos momento críticos nem sempre assumiu posicionamentos esperados pela maioria. E a sua mutação, aos olhos do povo, foi tal que já na reta final do seu mandato era visto como Judas. E as famigeradas dívidas ilegais contraídas pelo seu Governo foram determinantes para essa má imagem. Mas entre esses dois extremos, Messias e Judas, existe uma outra faceta pouco explorada pela opinião pública. Haverá nele um revolucionário incompreendido? Conversamos sobre Armando Guebuza com o sociólogo moçambicano Elísio Macamo:
DW África: Embora em Moçambique a independência muitas vezes seja vista como um processo concluído, ela mostra-se, na verdade um processo inacabado. Viu na presidência de Armando Guebuza algum contributo para esse processo contínuo?
Elísio Macamo (EM): Nenhuma independência é um processo concluído, a independência é uma espécie de plebiscito de todos os dias. É a maneira como a sociedade política, sobretudo, lida com os desafios que resultam da própria independência, como gerir a liberdade e as expetativas. De modo que nunca poderemos dizer que a independência está concluída, porque a história não se faz dessa maneira. Nesse sentido penso que a Presidência de Guebuza foi marcante, naturalmente teve as suas próprias caraterísticas. Teve um desafio completamente diferente dos dois anteriores Presidentes, sobretudo no que diz respeito ao facto de que ele foi chamado para consolidar o processo de paz que foi iniciado e mais ou menos fechado pelo seu antecessor Joaquim Chissano, ao mesmo tempo que procurou incutir uma nova dinâmica na maneira de fazer politica, na questão da autonomia, auto-estima, empreendedorismo, mas penso que colocar isso no topo da sua política revela um político astuto e com visão e que sabe o que quer fazer. Nesse sentido acho que foi extremamente marcante.
DW África: Relativamente à esta causa, em que lugar colocaria Guebuza, se comparado com os outros Presidentes moçambicanos?
EM: A comparação que faz mais sentido é com Joaquim Chissano, que teve missões bastante claras. Chissano teve de encetar as negociações para por termo a guerra de desestabilização movida pela África do Sul através da RENAMO contra o projeto político que se instalou logo depois da independência. Guebuza levou o processo de paz até ao fim ao mesmo tempo que tinha a missão de repensar o país e penso que foi o que ele fez. Não incluo Machel porque o período depois da independência foi completamente atípico. E para mim foi uma grande perda de tempo. Esse Governo praticamente criou as condições para todo o tipo de problemas que tivemos mais tarde, um projeto muito particularista, um projeto que refletia as preferências políticas de algumas pessoas, um projeto completamente sem respeito pelos direitos das pessoas, um projeto que não tinha nenhuma noção de dignidade para os moçambicanos. No fundo um Governo e um partido que até certo ponto traíram a sua própria luta. Não há como comparar Guebuza e Chissano, de um lado, e Machel, do outro, ainda que tenha feito parte do mesmo partido. Penso que cada um deles esteve a altura, Chissano e Guebuza, que se colocaram no momento em que assumiram o poder.
DW África: Sei que olha para a criação das empresas envolvidas nas dívidas ilegais como um engajamento de Guebuza no processo contínuo da conquista de independência, na medida em que duas delas iriam, entre outras coisas, garantir a soberania do país. Mas o corporativismo dita as regras do jogo mundial... Será que os ideais de Guebuza foram vítimas dessa ordem mundial?
EM: Acho que o projeto de Guebuza foi vítima de duas coisas: por um lado, foi vítima da cultura política implantada pela FRELIMO, sobretudo a FRELIMO gloriosa, uma FRELIMO que sempre se confundiu com o povo, uma FRELIMO fechada, pouco comunicativa, pouco sensível ao diálogo, inclusivamente dentro do próprio partido. Quando digo que o projeto foi vítima da cultura política dessa FRELIMO quero dizer essencialmente duas coisas: uma, é que justamente por causa dessa ideia de confundir a FRELIMO com o destino de Moçambique nunca houve uma cultura de pensar fora da FRELIMO, que fora da FRELIMO possam haver igualmente ideias boas para Moçambique e isso faz com que fora do partido a FRELIMO só veja inimigos da pátria. E isso não cria condições para uma cultura de debate aberto, foi uma das coisas que falhou. E o outro fator é a intransparência que foi determinante, num contexto em que as coisas são a porta fechada e que existe essa ideia de que todos os outros são inimigos da pátria é muito difícil ouvir uma voz sensata. Todo o contexto dentro do qual o país deve se desenvolver é e vai ser sempre hostil, acarreta muitos riscos. Essa decisão foi propositadamente tomada a revelia dos doadores justamente porque existe a sensação de que aquilo que o nosso Governo e que os moçambicanos pensam que podia ser bom não são do interesse dos doadores, que existe uma intenção malévola da parte dos doadores para impedir que as coisas sejam feitas. Naturalmente que isso pode criar condições para que haja esse tipo de atuação que vimos e com resultados catastróficos como agora estamos a saber.
DW África: As empresas em causa sob batuta inteiramente nacional são questionadas a nível internacional, mas se houver participação externa, como de Erik Prince por exemplo, já pouco se questiona externamente. Que leitura faz deste paradoxo?
EM: Sim, esse tipo de coisas acontecem, mas não iria atribuir assim tanto peso a isso. É verdade que as condições em que operamos e atuamos são naturalmente difíceis. Há sempre a suspeita que não somos sérios, que somos corruptos por natureza e por causa disso dá-se o benefício da dúvida mais a um estrangeiro, sobretudo a um estrangeiro conhecido. E Erik Prince com todas as suas ligações a segurança norte-americana é uma pessoa conhecida e até certo ponto de confiança e nós não gozamos disso. Mas penso que isso não é assim tão importante, é normal, infelizmente é assim e temos de aceitar. Talvez tenha um valor mais académico que é de chamar a nossa atenção para o facto de que isto também cria condições para que governantes de países em desenvolvimento também não tenham confiança nos doadores e que procurem fazer coisas a revelia deles, coisas que acham que fazem sentido e que pensam que se os doadores não vêm que essas coisas fazem sentido é porque os doadores têm outras motivações.
DW África: Acha que Guebuza está a pagar por ter ousado nos seus sonhos?
EM: Não, não acho que esteja a pagar pelos sonhos que teve. Ele é um homem ousado, pelo que sei dele pela imprensa, livros e por aí fora, tenho a impressão que é uma pessoa ousada, que arrisca e assume responsabilidades pelos riscos. Ele arriscou, e conforme ele disse quando foi ouvido no Parlamento, com o tipo de informações que teve na altura ele voltaria a tomar a mesma decisão. Para mim isso é extremamente coerente e aumenta a minha admiração por ele e mostra, de facto, que ele tinha um projeto e esperava através desta decisão, que depois se revelou má, esperava realmente executar esse programa que tinha. Portanto, não acredito que esteja a pagar pela sua ousadia numa posição que deve assumir responsabilidade pelo que fez conscientemente. E acho que é este tipo de políticos que precisamos em Moçambique que sempre precisamos, mas que infelizmente neste momento não temos.
DW África: Em que medida a pujança de Guebuza, enquanto homem de negócios, prejudicou a sua imagem e atuação enquanto estadista?
EM: De facto, existe esse mito de que Guebuza é um homem de negócios e que a sua atuação como político foi pontuada por essa caraterística, mas penso que esse é o aspeto menos importante da personalidade dele. Aliás, essa questão de ser homem de negócios manifesta o que me parece ser a sua verdadeira caraterística que é a de um homem que sabe o que quer e que quer fazer o que quer e que fica impaciente quando o que quer não é feito. Nesse sentido penso que a nossa atenção devia ir justamente para essa caraterística pessoal e não tanto para o facto de ser homem de negócios. Sei que as pessoas enfatizam esse lado para depois poderem falar das questões de corrupção e por aí fora, mas penso que essas questões são menos importantes. Tivemos um Presidente que sabia o que queria, mesmo se não tinha as pessoas certas para traduzirem isso em políticas claras, mas sabia o que queria. Teve iniciativas extremamente importantes, inéditas no contexto político do pós-independência como a ideia dos sete milhões de meticais para os distritos, uma ideia genial que mostrava pela primeira vez em Moçambique, depois que houve a abertura do sistema político, pela primeira vez um presidente da FRELIMO com uma ideia clara do que queria fazer para tornar o país melhor.
DW África: No famigerado caso das dívidas ilegais Guebuza era a autoridade máxima do país. Não terá ele uma cota de responsabilidade, mesmo que se prove que os ilícitos tenham sido feitos por gente do seu Governo?
EM: Ele tem toda a responsabilidade pelo que aconteceu e penso que ele próprio não vai fugir a essa responsabilidade. Pelo que sei dele, já houve outros casos em que esteve a frente, por exemplo lembro-me da famosa operação 20-24 [ordem de expulsão do país em 24 horas, com direito a 20 quilos de bagagem], ele era o ministro da Administração Estatal no Governo de transição, sei de várias fontes que houve outras pessoas que foram responsáveis por isso [e nunca assumiram], mas ele sempre assumiu a responsabilidade. Segundo soube de terceiros, ele assumiu porque era o ministro e não iria passar a responsabilidade aos seus subordinados. Do ponto de vista jurídico não sei, porque há muita coisa que a gente ainda não sabe em relação a este assunto. A forma como a acusação vem dos EUA dá a impressão de que todo este negócio foi montado para as pessoas burlarem. E até que provem o contrário, eu não acredito nisso. Acho que houve uma intenção genuína de fazer alguma coisa nessas áreas que foram identificadas e penso que o Presidente Guebuza também acreditou na viabilidade e importância disso para o desenvolvimento do país. O que ele não acautelou ou nenhum de nós acautelamos foi a possibilidade de aproveitamento por parte de várias pessoas que estiveram envolvidas nisso, não só da parte do Governo, da parte dos serviços de segurança, como também da parte dos parceiros estrangeiros. Essa é um outra questão e não tenho resposta para isso, mas penso que do ponto de vista político não há como fugir a isso uma vez que ele era o Presidente.
DW África: Face a "ordem mundial" prevalecente e aos apetecíveis recursos que Moçambique tem, acredita que o país está condenado a permanecer longamente no estado disfórico em que se encontra?
EM: Os recursos não são um problema, é verdade que os académicos gostam de falar da maldição dos recursos, gostam de falar da Líbia, da Síria e agora estão a falar da Venezuela, da cobiça do imperialismo, das potências capitalistas, por aí fora, e depois temos o caso de Cabo Delgado que dá a impressão de que realmente ter recursos é um risco. Acho que não é um grande problema, muito mais importante do que isso é ter Governo, não importa de que partido, que tenha uma visão e que saiba para onde quer levar o país e que faça isso. Tivemos isso com Guebuza, apesar de todos os problemas que estamos a ter agora. Ele pode não ter sido capaz de traduzir essa visão da melhor maneira possível, mas tivemos uma pessoa que tinha uma ideia clara do que esse país deveria ser. É isso que precisamos para evitar todos os males que são associados a posse de recursos. E muito importante aqui não é ter uma política económica, não é ter uma ideia de como lidar com os investidores, mas é de saber que princípios queremos promover e que valores precisam de ser protegidos para que a nossa independência continue a ter significado para nós. Enquanto tivermos Governos que não tenham noção disso vai ser difícil e esse que é o maior problema, muito maior do que ter recursos.