"Luanda Leaks": Testemunhas esperam justiça ampla
25 de outubro de 2020Rui Pinto é a fonte dos documentos que levaram a desvendar o "Luanda Leaks", investigação jornalística que expôs os esquemas alegadamente ilícitos de Isabel dos Santos. A empresária angolana é acusada, entre outros crimes, de má gestão, desvio de fundos e branqueamento de capitais.
O pirata informático português é também o autor do "Football Leaks", plataforma eletrónica através da qual divulgou milhares de documentos confidenciais de contratos e transferências do mundo do futebol, assim como alegados esquemas de evasão fiscal cometidos em diversos países, incluindo Angola.
Sobre Rui Pinto recaem 90 crimes que constam da acusação do Ministério Público. A ele são imputados os crimes de acesso indevido a documentos, violação de correspondência, sabotagem informática e tentativa de extorsão, entre outros.
Porque estão em causa interesses poderosos, há uma corrente de opinião que está contra a atuação do "hacker" português, enquanto que outras vozes, como a da ex-eurodeputada portuguesa Ana Gomes, são a seu favor - por ter prestado "um extraordinário serviço público não só a Portugal, com as revelações que fez no quadro do 'Football Leaks' e no quadro do 'Luanda Leaks".
De acordo com Ana Gomes, "muito mais pode vir a fazer Rui Pinto para ajudar as autoridades portuguesas a combater a criminalidade financeira e fiscal exposta através destes dossiers".
Recuperção de ativos
A ex-eurodeputada socialista afirma, em entrevista à DW África, que, entretanto, não foi ainda recuperado nenhum ativo à conta das revelações feitas por Rui Pinto, contrariamente ao que aconteceu noutros países europeus como Espanha, Bélgica, França e Inglaterra.
Ana Gomes critica as autoridades portuguesas, que preocuparam-se mais em "apanhar" Rui Pinto e não os verdadeiros criminosos denunciados por ele.
"Independentemente de a Justiça avaliar se ele cometeu ou não os crimes de que está acusado, o que eu sei é que são muito mais importantes e muito mais graves para o interesse público os crimes que ele expôs através do 'Football Leaks' e do 'Luanda Leaks'. São crimes de verdadeira criminalidade organizada ao nível do branqueamento de capitais, da corrupção, do desvio de recursos dos Estados e da criminalidade fiscal. E, portanto, a Justiça terá que valorar a importância dos crimes que ele expôs", argumenta.
A política portuguesa não aponta o dedo apenas a Isabel dos Santos e "toda a sua clique cleptocrata angolana" denunciadas no âmbito do "Luanda Leaks". Acrescenta que também estão envolvidos "todos aqueles que, em Portugal e noutros países europeus, foram cúmplices com o esquema de branqueamento de capitais organizado e de desvio de recursos do Estado angolano".
"Eu espero que, em vez de se focarem apenas no Rui Pinto, as autoridades portuguesas passem a focar-se nos criminosos que foram expostos por Rui Pinto", insiste a ex-eurodeputada.
Ana Gomes recorda que "muitos deles são portugueses ligados aos negócios do futebol e à promiscuidade que existe em Portugal envolvendo o poder político e económico, incluindo o papel desempenhado por importantes sociedades de advogados na organização dos esquemas de evasão fiscal e branqueamento de capital".
Dezenas de testemunhas a favor de Rui Pinto
Ana Gomes é uma das mais de 40 testemunhas que vão depor a favor de Rui Pinto, ainda sem data confirmada pelo tribunal. À lista juntam-se outros nomes da vida política e desportiva portuguesas como Francisco Louça, ex-coordenador do Bloco de Esquerda (BE), e o ex-ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro, que integrou o Governo social-democrata dirigido por Passos Coelho.
Na semana passada, uma das testemunhas ouvidas ao abrigo do processo "Football Leaks" foi o treinador português Jorge Jesus que, entre 2015 e 2018, era técnico do Sporting.
Além do jornalista e ativista angolano, Rafael Marques, outra testemunha a dar a cara em defesa do jovem informático, formado em História, é Paulo de Morais, ex-candidato presidencial e um dos fundadores da organização não-governamental Transparência e Integridade – Associação Cívica (TIAC).
"A informação que o Rui Pinto trouxe para a opinião pública é informação muito valiosa e todos devemos estar-lhe muito gratos. Aliás, é justamente por isso que eu aceitei com gosto ser sua testemunha. Irei a tribunal naturalmente responder às questões que me forem colocadas. Não fugirei a nenhuma, responderei a todas as questões para as quais me sinta capaz de responder", garante Paulo de Morais.
Atuação da Justiça
O líder da Frente Cívica espera que o tribunal decida com justiça em relação ao caso do "hacker" português.
"Espero também que não nos esqueçamos que Rui Pinto está a prestar um grande serviço à comunidade. Ou seja - independentemente das culpas que Rui Pinto tenha ou não, independentemente da decisão que o tribunal tomar, que obviamente todos temos que respeitar – o tribunal vai decidir soberanamente, estou certo, com justiça", avalia.
"Não podemos esquecer que toda a informação que Rui Pinto cariou para o 'Luanda Leaks', para o 'Football Leaks', enfim para a opinião pública em geral, neste aspeto deve ser considerado um herói. Não podemos esquecer esse facto", destaca.
A ex-eurodeputada portuguesa considera que a Justiça deve fazer o seu trabalho nos processos-crime que envolvem Rui Pinto, mas lembra que "não pode deixar de levar em conta o extraordinário interesse público das revelações que ele expôs ao mundo e dos alertas que enviou para as autoridades judiciais".
Ana Gomes exorta: "da mesma maneira que foram atrás do Rui Pinto, [as autoridades devem] ir atrás de criminosos que defraudaram de forma muito mais graves o povo português e outros povos".
Pede atuação, por parte da Justiça, "não apenas no sentido de os responsabilizar, mas também no sentido de recuperar os ativos que eles desviaram do Estado português e de outros Estados como Angola".
Tanto Ana Gomes como Paulo de Morais ainda não receberam notificação oficial da data de comparência para prestarem declarações no Campus da Justiça, no Parque das Nações, onde decorrem as 36 sessões do julgamento, que deverá prosseguir até dezembro deste ano.