Guiné-Bissau: "É verdadeiramente um golpe de Estado"
10 de março de 2020Há uma semana, o coletivo de advogados de Umaro Sissoco Embaló disse à DW África que não houve golpe de Estado na Guiné-Bissau, que a Constituição está a ser respeitada e que há um candidato derrotado. Segundo os advogados de Sissoco, Domingos Simões Pereira estaria em conluio com o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e, por isso, não aceitou os resultados.
Em nome do coletivo de advogados, Nelson Moreira disse que Sissoco Embaló não pode ser chamado de "autoproclamado Presidente" porque foi declarado vencedor pela instância competente - a Comissão Nacional de Eleições (CNE).
Em entrevista à DW, no entanto, o constitucionalista português Jorge Miranda - que ajudou a escrever a Lei Magna da Guiné-Bissau - critica a tomada de posse de Sissoco Embaló. Segundo o professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Sissoco Embaló "não é um Presidente verdadeiramente constitucional" porque, antes de tomar posse, devia ter esperado pela decisão do STJ sobre os recursos apresentados por Domingos Simões Pereira - do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Jorge Miranda lamenta a crise pós-eleitoral: "É uma coisa extremamente triste" e "muito grave", afirma.
DW África: Aos olhos da Constituição da Guiné-Bissau estamos perante o quê?
Jorge Miranda (JM): A Constituição da República da Guiné-Bissau não fala explicitamente nessa fase de apuramento e de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Mas a prática é, a meu ver, verdadeiramente um golpe de Estado. Aquilo que o candidato que tinha ficado em primeiro lugar nas eleições fez, assumindo o poder, tomando posse como Presidente da República, sem esperar pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça, é um verdadeiro golpe de Estado. Se tinha tanta confiança que ganhou as eleições, por que não aguardou mais uns dias até o STJ decidir?
Tomando posse nos termos em que tomou e com o apoio dos militares - com a intervenção dos militares que ocuparam os serviços públicos. Isso, a meu ver, corresponde a um golpe de Estado. [Houve] uma violação das regras fundamentais de um Estado de direito, porque, num Estado de direito, a última palavra, quando há contestação, cabe aos tribunais. No caso da Guiné-Bissau, não há Tribunal Constitucional - como acontece em Portugal ou na Alemanha - mas é o Tribunal de Justiça que deveria decidir e acabou por não poder decidir. Portanto, a situação, a meu ver, é muito grave. É muito triste também, para quem tem acompanhado a Guiné-Bissau há muitos anos, verificar que o país, ao fim de mais de 45 anos da independência, ainda não consegue viver em paz e tranquilidade. É uma coisa extremamente triste.
DW África: Na sua interpretação, Umaro Sissoco Embaló deve ser chamado de "autoproclamado Presidente da República" mesmo com os resultados da CNE?
JM: Acho que sim. Porque proclamou-se Presidente sem haver o cumprimento dos processos jurídicos necessários, sem haver a decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Portanto, não é um Presidente verdadeiramente constitucional.
DW África: A legislação guineense prevê que, em caso de vacatura na Presidência da República, é o presidente do Parlamento quem deve assumir como interino...
JM: Aliás, é uma situação anómala que já se tinha verificado com o anterior Presidente, que terminou o mandato e se manteve em funções. Até convocou eleições. Também já era uma situação manifestamente contrária à Constituição. O anterior Presidente, José Mário Vaz, manteve-se no cargo para além do termo do mandato. Neste momento, estamos também numa situação muito grave de crise e de golpe de Estado.
DW África: Então, quer dizer que o presidente do Parlamento deveria ser o Presidente interino?
JM: Sim, seria o presidente do Parlamento a assumir a Presidência. Tendo em conta que tinha terminado o mandato do antecessor, seria o presidente da Assembleia Nacional Popular a assumir as funções.
DW África: Umaro Sissoco Embaló, que chama de autoproclamado Presidente, demitiu o Governo que resultou das eleições legislativas e nomeou um novo Executivo. Como podemos enquadrar este Governo?
JM: Enquadra-se no mesmo conjunto. Ele [Sissoco Embaló] demitiu o Governo exercendo aquilo que seriam as funções de um verdadeiro Presidente. Mas, como não é um verdadeiro Presidente, essa demissão do Governo também é inconstitucional.
DW África: Qual seria a saída para a situação à luz da Constituição?
JM: Receio que o Supremo Tribunal de Justiça já não esteja em condições de decidir, porque há de haver uma pressão terrível, principalmente dos militares, sobre o STJ. Se o Supremo realmente reconhecer a validade da eleição e reconhecer que o autoproclamado Presidente é Presidente, deveria fazer-se uma nova cerimónia de posse nos termos constitucionais.
DW África: Quer dizer que as leis não foram respeitadas na sua tomada de posse?
JM: [A Constituição] não está a ser respeitada.
DW África: Eliminar o cargo do primeiro-ministro, ou seja, mudar o sistema de governo de semipresidencial para presidencial seria uma solução para as crises cíclicas na Guiné-Bissau?
JM: Eu tenho muito medo do presidencialismo fora dos Estados Unidos da América. Em geral, o presidencialismo fora dos EUA tem conduzido sempre ao poder pessoal do Presidente. Veja o que tem acontecido na América Latina e veja o que tem acontece em grande parte de África. De maneira que, o melhor sistema seria um sistema semipresidencial, com um equilíbrio entre o Parlamento e o Presidente da República, e no meio o Governo. Agora, não haver o primeiro-ministro daria uma grande força ao Presidente da República. De maneira que eu acho que é melhor haver um primeiro-ministro com o apoio parlamentar. E depois tem que se encontrar uma solução de consenso, de equilíbrio, entre o Presidente e o primeiro-ministro - o que evidentemente não é fácil. Mas em Portugal tem-se conseguido encontrar, noutros países também. Nunca é fácil. Agora, o presidencialismo é um risco enorme de ditadura.
DW África: Não seria um sistema ideal para a Guiné-Bissau?
JM: Não recomendaria. Em Cabo Verde funciona o sistema semipresidencial, e muito bem. Eu sei que o sistema de Cabo Verde é diferente da Guiné-Bissau. Mas funciona muito bem. Em São Tomé e Príncipe é mais ou menos. Em Angola e Moçambique, falando dos países africanos de língua portuguesa, não diria que é a ditadura, mas há um poder pessoal muito forte do Presidente.
Em alguns outros países, a tendência é para a concentração do poder no Presidente. Na América Latina, a história dos últimos 200 anos é de quase ex-ditaduras presidenciais.