"Fala Angola": O programa que incomoda os poderosos
27 de dezembro de 2018O "Fala Angola" está a mudar a maneira de fazer televisão no país. Lançado há meio ano pela TV Zimbo, parceira da DW, o programa rapidamente conquistou um lugar de destaque nas audiências. Outros canais tentam replicar o formato. Apresentado por Salú Gonçalves, voz conhecida da rádio, "Fala Angola" retrata os problemas sociais do país e denuncia casos de corrupção e abuso de poder.
Os mais críticos dizem que o programa é demasiado "sensacionalista", que não se trata de jornalismo, mas de entretenimento. O "Fala Angola" anda na boca do povo, que vê no programa uma espécie de consultório e faz filas à porta da estação de televisão desde a madrugada para partilhar as suas histórias e preocupações.
"Fala Angola" incomoda os políticos. Por causa do conteúdo do programa, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) acusou a televisão privada de "instigação à desobediência". O partido no poder também não poupa críticas ao apresentador Salú Gonçalves, que considera demasiado "excêntrico e polémico" para conduzir um programa que supostamente deveria dar voz aos angolanos.
Mas "pôr o dedo na ferida" e "afligir os poderosos" é precisamente o objetivo do "Fala Angola", confirma Willian Corrêa, o jornalista e apresentador brasileiro que já tinha reestruturado a emissora privada angolana em 2010 e que agora está de volta a Luanda. A DW África conversou com o administrador da TV Zimbo na capital angolana.
DW África: Como é que foi começar esta experiência aqui em Angola, para onde trouxe um modelo que é tipicamente brasileiro?
Willian Corrêa (WC): O "Fala Angola" tem a característica de ser um programa a que chamamos formato do plano-sequência: O que é mais importante é o facto. A câmara vai à frente e o repórter vai narrando aquilo que vê. Esse é o perfil do "Fala Angola", que tem uma vertente social e mostra muito o conceito da sociedade, os seus problemas e as suas aspirações. O olhar do "Fala Angola" é o olhar do cidadão. Fazer jornalismo é pôr o dedo na ferida, é dar voz aos aflitos, é afligir os poderosos. E o "Fala Angola" é mais ou menos assim. Causa esse ambiente de satisfação para o lado do social e de insatisfação para os gestores públicos, porque mostra exatamente as necessidades e as demandas da população.
DW África: E num país como Angola, que está agora a sofrer alterações - mudanças democráticas e políticas - sentiu que realmente havia mercado para fazer este tipo de programa?
WC: O que nos levou a fazer este tipo de programa foi exatamente a abertura que o novo Executivo do novo Presidente está a promover. No seu primeiro discurso, ele disse isso: uma Angola mais aberta, uma Angola mais voltada para o mundo, uma Angola aberta às novas visões, às novas tecnologias, aos novos conceitos de mundo. Quando percebemos que o próprio país se estava a preparar para essa abertura, pensamos: porque não criar um programa com essa vertente também de contestação? Na verdade, o "Fala Angola" não é um programa basicamente de fazer contestação, mas sim de mostrar os factos e a realidade como ela é. Esse é que é o diferencial.
DW África: Mas por vezes existe o risco de exceder a função social. E não é esse o objetivo do programa - "não estão aqui para julgar ninguém", como já disse. Como é que resolvem esse conflito?
WC: É muito difícil. Sempre estudamos e prega-se sempre que o jornalismo não pode ser subjetivo, que tem mais do que um olhar. E num programa como o "Fala Angola", mesmo tendo essa linha subjetiva - porque o apresentador às vezes exerce a função de mediador - é preciso ter esse cuidado de mostrar os dois lados da notícia. Como mostramos o facto, tentamos também mostrar o outro apelo do outro lado e perseguimos isso no nosso quotidiano. Qual é o nosso papel e até que ponto podemos mostrar determinado facto, antes mesmo de haver um julgamento oficial. Muitas vezes, o que fazemos é: Não julgamos, mostramos o facto, os dois lados e o julgador aí é quem assiste ao programa.
DW África: E a escolha do apresentador também não foi por acaso. Foram buscar uma pessoa da rádio, Salú Gonçalves. Porquê?
WC: Eu vim da rádio. No Brasil, todos os apresentadores de televisão vieram da rádio. Adequamo-nos à realidade da TV, que é mais objetiva e mais rápida. E quando chego para desenvolver um programa desses, não podia ter essa objetividade que temos na televisão, porque no "Fala Angola" posso mostrar uma reportagem durante 40 minutos, então preciso de um comunicador que consiga destrinçar aquela reportagem e passar uma certa história. Como se estivesse a contar a história do capuchinho vermelho. Precisava de um apresentador que tivesse essa capacidade de contar histórias. Fomos fazendo alguns testes e encontrámos o Salú Gonçalves, que já era conhecido da rádio, não tão expressivo como é hoje, mas já era uma pessoa conhecida e foi mesmo fácil para nós porque ele tinha esse poder de comunicação. Usamos esse poder que a rádio tem com a questão da imagem e da objetividade da televisão, e um pouquinho dessa subjetividade que a rádio permite, e chegamos a essa fórmula Salú Gonçalves e "Fala Angola".
DW África: Uma fórmula que tem um cunho bastante brasileiro, porque em Angola não existia esse tipo de programa e a TV Zimbo foi buscá-lo ao Brasil, também por causa da sua experiência no mercado paulista.
WC: Quando esse programa foi para o ar, fui criticado e a TV Zimbo foi criticada por estar a fazer um programa tipicamente brasileiro em Angola, onde as pessoas não têm a mesma visão de um brasileiro. E eu tentei ao máximo responder às críticas, dizendo que hoje em dia com a globalização já não existem programas desse ou daquele país. O que o "Fala Angola" trazia era um jornalismo diferenciado do que se pregava e do que se fazia aqui no país. E havia a crítica que de isto não era jornalismo, era entretenimento. E eu perguntava: O jornalismo que dá audiências não é um jornalismo que entretém? Então, não vamos transformar o entretenimento em algo pejorativo. O que eu trouxe para cá não foi um programa brasileiro, mas um programa que foi criado também no Brasil. Há um diferencial em termos de formato. Mas quem assiste ao "Fala Angola" pode ver que já tem a cara de Angola, não é um programa tipicamente brasileiro.
DW África: Vê-se que foi um programa pensado. Houve uma pesquisa de mercado para saber o que os angolanos queriam. Basta ver aqui à porta da TV Zimbo, todas as manhãs, as filas de pessoas que vêm falar dos seus problemas e mostrar as suas preocupações. É o que os angolanos querem neste momento?
WC: Fizemos uma pesquisa para saber o que as pessoas gostariam que a TV Zimbo tivesse e o que não era adequado. E o ponto que mais merecia elogios é que a TV Zimbo, quando começou, era uma televisão que ouvia o cidadão. O angolano sentia-se parte da TV Zimbo e a TV Zimbo dava essa resposta a Angola, com programas que ouviam o cidadão. Quando chegamos aqui no início deste ano, percebemos que a TV Zimbo estava um pouco afastada da população, já não mostrava os seus anseios. E o "Fala Angola" surgiu dessa necessidade. Vimos a necessidade de criar um programa para as 18h00 (início do prime time) que fizesse essa ligação entre o nosso entretenimento, que é a "Tarde Toda", com o nosso jornalismo. Unimos as duas coisas e criamos um programa inspirado na própria população de Angola.
DW África: E como tem sido a reação das autoridades? Houve algum tipo de pressão do Governo?
WC: Não houve uma influência ou ingerência governamental. O que houve foi um debate em torno da questão: Qual é o papel da televisão? A televisão tem o papel de julgar? Houve esse debate nos meios de comunicação social, exatamente usando o "Fala Angola". Dizia-se que o "Fala Angola" foi criado por um brasileiro que quer substituir as instituições públicas do país. E tive de vir a público explicar que não era esse o papel do "Fala Angola". O papel do "Fala Angola" não é julgar absolutamente nada, o "Fala Angola" apenas mostra os factos e a realidade nua e crua. E muitas vezes isso pode trazer esse conceito de que estamos a julgar alguém. Por exemplo, um administrador de um município da cidade que não tapa um buraco na rua. O "Fala Angola" vai até lá e mostra que o buraco está lá há séculos e não é tapado. Mas o "Fala Angola" apenas questiona o porquê de o buraco não ser tapado. Já começaram a perceber que o "Fala Angola" é um agente público, um agente de auxílio às iniciativas públicas. Só estamos a mostrar o que a população espera de um gestor público.